Tutela

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Sempre que a verdade incômoda ameaça vir à tona, o poder político é rápido em projetar dispositivos monstruosos, forjando consensos em torno de iniciativas aparentemente "bem-intencionadas" que, em essência, resultam em uma cidadania infantilizada e sem autonomia. Essa atitude reflete um sistema político que nos vê como incapazes de raciocínio independente e revela a persistência de uma visão paternalista do Estado. É uma evidência irrefutável de uma forma de autoritarismo anacrônico disfarçado de proteção.
Atualmente, assistimos a um intenso debate desencadeado por uma iniciativa legislativa que propõe alterar vários artigos do Código de Processo Penal. O projeto, promovido por uma moção de um grupo multipartidário de senadores, busca punir com pena de prisão aqueles que "disseminam" informações de investigações criminais declaradas confidenciais. O problema que se propõem a remediar é real: o uso frequentemente tendencioso, descontextualizado e arbitrário de vazamentos em casos de grande repercussão está conferindo aos promotores que o fazem um poder desproporcional e desequilibrado. Os políticos os temem, o governo não pode intervir e a imprensa não os questiona, em parte porque são os principais destinatários dos vazamentos.
Seus proponentes argumentam que se trata de uma proposta que visa encontrar um equilíbrio entre a transparência do sistema judicial e a proteção dos direitos fundamentais, e que suas medidas visam desencorajar o uso indevido de processos criminais por parte de políticos ou da mídia. No entanto, a iniciativa suscita sérias preocupações, pois restringe significativamente o escrutínio público e o acesso à informação de interesse geral, afetando diretamente a liberdade de expressão, um direito expressamente consagrado no Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos .
Esse zelo legislativo não é novo e, desde o início do século XXI, são conhecidas as tentativas da classe política de "regular a mídia". A título de contexto geral, recordemos que foi somente entre 2001 e 2005 que a referência ao crime de desacato à autoridade, especialmente sua tipificação como calúnia, foi progressivamente eliminada em diversos órgãos reguladores (Leis 19.733 , 20.048 e 20.064 ). Muito antes disso, reinava a mordaça feroz da infame Lei de Segurança Interna do Estado , uma das ferramentas preferidas da ditadura para reprimir a dissidência, inclusive de jornalistas , escritores e profissionais da comunicação.
Sob outra perspectiva, esta proposta legislativa não pode ser entendida isoladamente do contexto em que surge. Ela surge após uma série de vazamentos que revelaram irregularidades no uso de recursos públicos, tráfico de influência e vínculos opacos entre atores políticos e empresariais. Diante dessa exposição, a reação do Poder Legislativo não tem sido fortalecer mecanismos internos de controle, mas sim tentar estancar o fluxo de informações, criminalizando o mensageiro. Assim, o que está em jogo não é apenas a regulamentação do processo penal, mas o tipo de democracia que queremos habitar: aquela em que a verdade é incômoda, mas acessível, ou aquela em que o silêncio é administrado juridicamente.
Embora alguns dos proponentes do projeto tenham tentado amenizar as consequências punitivas, o efeito estrutural é o mesmo: o medo se estabelece como uma barreira à denúncia. Quando a denúncia implica o risco de uma sanção financeira ou criminal, o resultado não é a ordem processual, mas a autocensura. E na autocensura, o poder sempre vence. A ideia de que há momentos em que a informação deve ser retida "para não atrapalhar o processo" incorpora um julgamento sobre a suposta incapacidade do cidadão comum de discernir, compreender ou interpretar. Em outras palavras, é uma forma de proteção à autonomia informacional.
Uma sociedade onde a informação é gerida como um privilégio, em vez de reconhecida como um direito, é uma sociedade onde os cidadãos são meros receptores passivos das versões oficiais. Portanto, o argumento dos senadores de que o projeto de lei busca proteger a "honra dos envolvidos" ou a "eficácia do processo" deve ser analisado com cautela. Em uma democracia madura, a transparência não é um risco: é um mecanismo de legitimidade; e quando o sistema falha, o jornalismo livre é a última linha de defesa.
Como afirmou recentemente Jan Martínez Ahrens, o novo diretor de redação do jornal El País : “ Vigiar o poder e desconfiar das versões oficiais e tendenciosas (…) são nossas armas… ” Esta declaração é um lembrete de que o jornalismo não existe para agradar ao poder, mas para interrogá-lo; assim, cada lei restritiva, cada código penalizador, cada ameaça que silencia cria um cidadão mais obediente, mais desinformado e, portanto, menos livre.
Portanto, a Lei da Mordaça 2.0 não deve ser entendida como um problema que afeta exclusivamente os jornalistas; na minha opinião, é um problema de todos. Porque quando a reportagem se torna crime, o que desaparece não é apenas a notícia, mas a possibilidade de compreender, deliberar e agir como cidadãos. A liberdade de imprensa não é um acessório da democracia: é a sua espinha dorsal. E quando essa espinha dorsal se enfraquece, o que resta não é a ordem. É a tutela. E uma sociedade tutelada não discute, não exige, não decide. Ela apenas obedece.
EL PAÍS