A tragédia da população queer de Uganda: presa entre leis homofóbicas e cortes na assistência médica

Gloria lembra que estava em sua nova casa há apenas dois meses, após ser despejada de seu apartamento anterior por um proprietário que a acusou de se envolver em "atividades demoníacas", quando ouviu no rádio que os Estados Unidos iriam cortar o financiamento para os programas de saúde da USAID, sua agência de ajuda . Três semanas depois, essa mulher bissexual que trabalha como prostituta foi a uma clínica sem hora marcada em seu bairro, nos arredores da cidade de Gulu, no norte de Uganda, na esperança de reabastecer preservativos, tiras de teste de HIV e pílulas de PrEP (profilaxia pré-exposição ). Mas ela ficou surpresa ao encontrar um dos funcionários dizendo a ela que o centro fecharia em breve. "Eu estava preocupada. Preciso de medicamentos para HIV para me proteger toda vez que faço sexo com meus clientes", lembra a mulher de 32 anos, que prefere não dar seu nome completo.
A conselheira tentou, em vão, tranquilizá-la, dizendo que precisavam esperar a intervenção do governo, mas Gloria tinha motivos para estar nervosa. Em 2023, Uganda promulgou uma lei severa contra a homossexualidade e, desde então, um clima de hostilidade em relação às pessoas LGBTQI+ irrompeu nas comunidades conservadoras. Essa mulher não sofreu discriminação apenas ao alugar um apartamento, mas também quando precisava ter acesso a cuidados de saúde. Por isso, Gloria frequenta clínicas sem hora marcada, que em Uganda funcionam como "espaços seguros" para minorias sexuais, profissionais do sexo, pessoas que usam drogas injetáveis ou pessoas em risco de contrair HIV, como motoristas de caminhão, pescadores e trabalhadores do carvão. Lá, são oferecidos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo testes de HIV, aconselhamento, contraceptivos e outros medicamentos.
No entanto, após a ordem do presidente Donald Trump de desmantelar a USAID, o Ministério da Saúde de Uganda anunciou o fechamento dessas clínicas por falta de recursos e planejou integrar seus serviços a hospitais públicos em todo o país. Isso força pessoas LGBTQI+ que buscam acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva a se misturarem à população em geral. Como resultado, algumas deixaram de frequentá-las por medo de serem estigmatizadas ou assediadas por grupos mais conservadores.

Para Gloria, essa perspectiva era assustadora. "Já fui estigmatizada o suficiente e não posso arriscar minha vida indo a um hospital público sendo bissexual", explica. Então, ela contatou Brenda Lamwaka, que a ajudou a obter indenização quando seu senhorio a despejou ilegalmente. "Perguntei se ela poderia pegar medicamentos preventivos contra o HIV para mim", conta, e Lamwaka concordou.
Lamwaka é uma pessoa transgênero que, por motivos pessoais e para sua própria segurança, manteve até agora seu nome feminino. Nesta reportagem, ele prefere usar o pronome masculino, sua verdadeira identidade, para se referir a si mesmo. Lamwaka sabe o que significa ser marginalizado por sua identidade de gênero. Além de oferecer serviços jurídicos gratuitos desde 2018, o escritório que ele aluga "é quase um centro de serviços comunitários", diz ele. Por exemplo, se pessoas LGBTQIA+ são detidas pela polícia, ele as ajuda a obter fiança, as conecta a advogados para assistência jurídica ou as orienta no preenchimento de documentos legais.
Aumento das infecções por VIHJá fui estigmatizado o suficiente e não posso colocar minha vida em risco indo a um hospital público sendo bissexual.
Glória, trabalhadora sexual ugandense
A paixão de Lamwaka por ajudar outras pessoas queer nasceu na adolescência. Aos 16 anos, ele fugiu de casa depois que sua mãe o forçou a se casar. "Fui estuprado por um homem que deveria ser meu marido. Também fui estigmatizado; as pessoas me xingavam por quem eu sou: um homem transgênero. Eu estava perto de cometer suicídio", lembra ele.
Depois dessa provação, ela soube que uma ONG local treinava voluntários como conselheiros e mentores, e se sentiu inspirada. "Eu já oferecia serviços de aconselhamento. Às vezes, pessoas queer vinham à minha casa para pegar pílulas de prevenção ao HIV. Elas se sentiam seguras comigo", acrescenta Lamwaka.
O HIV e as doenças sexualmente transmissíveis são a segunda principal causa de morte em Uganda e a principal causa de morte entre as mulheres, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Embora a taxa de novas infecções por HIV tenha diminuído no país nos últimos 30 anos — atualmente em 0,9 casos por 1.000 habitantes —, ela ainda é superior à taxa do continente africano (0,6) e à taxa global (0,2).
O problema, porém, é que a suspensão da USAID e outros cortes na ajuda internacional correm o risco de um retrocesso na luta contra o HIV. A USAID, segundo pesquisa da ISGlobal , conseguiu reduzir o número de mortes por HIV em 74% nos últimos 20 anos. Outro estudo, publicado na revista The Lancet , estimou que, se os cortes continuarem, o mundo registrará entre 770.000 e 2,9 milhões de mortes relacionadas ao HIV e até 10,8 milhões de novas infecções nos próximos cinco anos, principalmente na África Subsaariana.
Por exemplo, na cidade de Gulu, onde Gloria mora, a interrupção do financiamento da USAID forçou um dos principais hospitais públicos a demitir 20 conselheiros que eram responsáveis por organizar atividades de educação em saúde, administrar testes de HIV e oferecer aconselhamento a grupos de risco.
Um dos profissionais de saúde, que atende a comunidade gay em uma unidade pública, mas prefere não se identificar, revelou que “as infecções por HIV aumentaram significativamente” na cidade de Gulu desde que os programas da USAID foram suspensos.
Medo do estigmaRecentemente, Lamwaka foi a um hospital público na cidade de Gulu porque seus medicamentos estavam acabando. "Meus clientes se sentem seguros quando eu pego suprimentos médicos para eles, e eles não precisam ir a hospitais públicos", explica ela.
Lá, ela se encontrou com profissionais de saúde que prestam serviços de saúde sexual e reprodutiva para pessoas LGBTQI+. O profissional de saúde contou a Lamwaka que muitas pessoas queer ainda relutam em ir ao hospital por medo do estigma. "Muitas pessoas queer se estigmatizam", disse o profissional.
A situação não é fácil, mas Lamwaka mantém a esperança. Por enquanto, ela precisa se esforçar para "garantir que as pessoas recebam todos os serviços necessários". "O mais doloroso do estigma é que, depois que você o vivencia, ele te consome dia após dia. Mas estou aqui para ajudar meus funcionários a se sentirem seguros quando vierem buscar suas compras no meu escritório", diz ela.
Para Gloria, é essencial criar um ambiente seguro onde todos os ugandenses LGBTQI+ tenham o mesmo acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva que antes do corte de verbas da USAID. "É difícil ser queer em Uganda, mas Lamwaka sempre nos apoiou nos bons e maus momentos", enfatiza. "Rezamos para que as pessoas queer em nosso país sejam tratadas como seres humanos e não com repulsa", confidencia.
O caminho difícil descrito pelas minorias ugandenses contrasta com o otimismo das autoridades ugandenses. "O governo, por meio do Ministério da Saúde, garantiu ao país que o fornecimento de medicamentos para HIV não foi afetado pelo corte de financiamento da USAID", afirma Sheila Nduhukire, porta-voz da Reserva Médica Nacional de Uganda.
Segundo a autoridade, o país já sofreu cortes anteriores, como quando o Banco Mundial interrompeu o financiamento de projetos devido à lei homofóbica. "Eles acharam que não sobreviveríamos, mas não foi o caso. Nos mantivemos à tona por dois anos fiscais", disse ela, parabenizando-se.
EL PAÍS