Marta G. Franco e o colapso das redes sociais: o que vem depois do Twitter e do Facebook

Discurso de ódio , memetização da política, crise de credibilidade, notícias falsas , inteligência artificial e monetização de dados fazem parte da nossa experiência diária na internet. No entanto, nem sempre foi assim. Houve um tempo em que a internet era um espaço aberto para uma multidão diversa e multifacetada desenvolver suas capacidades criativas, produtivas e transformadoras, fomentando uma inteligência coletiva que desafiava os modelos da modernidade.
Essa utopia democratizante durou pouco. Ou pelo menos é assim que Marta G. Franco argumenta em "Las redes son nuestra" (As redes são nossas, Consonni, 2024), pois não demoraria muito para que a internet nos fosse roubada . "A internet era nossa", observa esta consultora de comunicação espanhola, "e nos foi roubada três vezes".
O primeiro roubo ocorreu na década de 1990 , quando a internet foi privatizada . Um sistema de computadores financiados publicamente e conectados por cabos em universidades e centros de pesquisa foi assumido por empresas privadas.
O segundo roubo foi a Web 2.0. Dessa infraestrutura privatizada , eclodiu uma explosão de criatividade social, compartilhamos conhecimento e criamos novas formas de comunicação e organização, enquanto plataformas comerciais absorveram esse potencial para transformar nossa atividade em um modelo de negócio baseado na extração de dados.
O terceiro roubo, o mais recente e doloroso, ocorreu quando, durante uma década, a sociedade civil — movimentos sociais, ativistas e comunidades digitais — utilizou o Facebook, o Twitter e o YouTube para desafiar a agenda , testar novos discursos e abrir espaços de debate. "Quando isso aconteceu, uma reação conservadora bem organizada se propôs a neutralizar esse poder", disse Marta Franco, figura ativa desde o movimento 15M, ao Clarín .
Nesta entrevista, Marta G. Franco não apenas propõe a retomada da internet — sua regulamentação, seu uso, seu espírito coletivo — como também nos oferece chaves para interpretar a ascensão global da nova direita . Compreender como o espaço digital é contestado é, em última análise, compreender como o poder político e cultural é contestado em nosso tempo.
–Ficou claro que uma comunidade de escritores, políticos, artistas e designers havia surgido no Twitter, que se transformou em discurso de ódio e conteúdo viciante, como a conta da Rádio Gênova. Estamos diante do fim das mídias sociais como plataformas de discussão democrática?
– Sim, sem dúvida. Durante vários anos, o Twitter funcionou como uma espécie de ágora digital. Não era a rede com mais usuários, mas era a mais influente para aqueles atentos à política, ao ativismo e aos debates sociais. Jornalistas, artistas, designers e intelectuais se encontravam ali. Era um espaço vibrante de troca e discussão pública. Mas isso mudou. Setores reacionários entenderam a importância estratégica daquele território e começaram a ocupá-lo à força. Steve Bannon explicou isso brutalmente quando disse que o objetivo era "inundar a zona com merda". O propósito era claro: tornar inabitável aquele espaço, que servia de plataforma para o pensamento compartilhado. Com a compra do Twitter por Elon Musk, esse processo se acelerou; a plataforma tornou-se abertamente um instrumento de uma agenda ideológica específica. Mudanças técnicas, decisões editoriais, a proliferação de bots e a desinformação apontam para a desativação do potencial democrático das redes. O que antes era um lugar para testar novas ideias transformou-se em um pântano.
–Os dados matam a narrativa? Dados abertos podem contribuir com evidências para o debate público?
– De jeito nenhum. A narrativa nunca desaparece porque é como as pessoas entendem o mundo. Não se trata de contrastar razão e emoção, mas sim de compreender que a narrativa também tem sua própria lógica racional, mas baseada em valores, afetos e significados compartilhados. Diante da emoção, os dados por si só não bastam. Não por falta de racionalidade, mas porque a linguagem é diferente. Quem tenta intervir no espaço público apenas com números e gráficos está falando uma língua que muitos não entendem. E em tempos de confusão, precisamos de narrativas honestas e poderosas que nos ajudem a imaginar o futuro.
Marta G. Franco é autora de The Networks Are Ours (Consonni).
– Na Argentina, vivemos 20 anos de extrema polarização política. A Europa parece uma sociedade em declínio. Estamos diante do fim do projeto republicano ocidental?
– É evidente que as democracias liberais ocidentais atravessam uma crise profunda. Na Europa, há dados preocupantes; pesquisas entre jovens mostram que uma porcentagem crescente não vê diferença entre viver em uma democracia ou em uma ditadura. A perda de legitimidade institucional é real e não pode ser explicada apenas pelo que acontece na internet. A tentação de culpar as mídias sociais por essa insatisfação democrática é compreensível, mas limitada. Há causas estruturais mais amplas: o desmantelamento do Estado de bem-estar social, a crescente desigualdade, a crise ecológica, a precariedade da vida. Há também uma crise de masculinidade que está tensionando a ordem patriarcal, e isso gera uma reação negativa. A fragmentação do espaço público não pode ser compreendida sem olhar para o poder econômico global e as elites que estão gerando um mundo cada vez mais instável e injusto.
–Você não vê uma deterioração no debate público?
–Sim, claro. Quando o debate político se desloca para plataformas que priorizam a brevidade, o sensacionalismo e a viralidade, perde-se a capacidade de desenvolver ideias complexas. Há uma simplificação brutal do discurso. Mas insistir que tudo isso é culpa do Twitter ou do TikTok é, ao mesmo tempo, preguiçoso e falso. O empobrecimento do debate também é consequência de um sistema que cerceia direitos, sufoca o bem comum e promove o individualismo. O presente não pode ser analisado sem considerar a lógica extrativista das grandes plataformas, mas também sem olhar para a concentração de riqueza, o colapso ecológico ou a ofensiva contra direitos conquistados pelos feminismos. As redes sociais refletem, ampliam, mas não inventam tudo do zero. Por isso, a análise deve ser mais complexa e menos complacente.
– Costuma-se dizer que os Estados Unidos inovam, a China copia e a Europa regula. A Europa está presa entre a dependência tecnológica e a regulamentação?
– Com certeza. A Europa é tecnologicamente dependente de grandes empresas americanas, e isso não é coincidência. Durante décadas, os governos europeus não investiram o suficiente em ciência e desenvolvimento tecnológico. Enquanto isso, os Estados Unidos investiram, e com dinheiro público. Como explica Mariana Mazzucato, muitos componentes do iPhone — a tela sensível ao toque, o GPS, a Siri — foram desenvolvidos em centros de pesquisa públicos. A Apple simplesmente os montou e os transformou em um negócio. Agora, com a chegada de Trump e a influência de Elon Musk, o financiamento público para a ciência também foi cortado nos Estados Unidos. Essa tendência pode corroer sua capacidade de inovação no futuro. Na Europa, no entanto, continuamos presos entre a falta de investimento e uma narrativa enganosa que culpa a regulamentação pela falta de grandes empresas de tecnologia. A regulamentação não é o problema. Na verdade, é o que impede que os aviões caiam. O mito de que inovação requer desregulamentação beneficia apenas o lobby da tecnologia. O que precisamos é de investimento público, regulamentações fortes e sistemas abertos que permitam a colaboração entre setores.
–Qual modelo de governança para a internet e tecnologias como inteligência artificial você considera mais viável? Maior regulamentação? Mais transparência?
–O único caminho sustentável é por meio de sistemas descentralizados, com protocolos abertos e um forte investimento em software de código aberto. Essa arquitetura é o que tornou possível que a internet se tornasse uma rede global. Sem ela, estaríamos presos em jardins murados, como projetos corporativos fracassados em décadas anteriores. A internet, em sua camada mais básica, ainda funciona graças aos padrões de código aberto. Isso nos permite enviar um e-mail de um servidor no Gmail para outro no Hotmail, independentemente do software que usamos. Esse é o modelo a seguir: interoperabilidade, colaboração entre os setores público, privado e da sociedade civil. Um ecossistema onde podemos construir e nos conectar sem depender de uma única plataforma. E cuidado, muitas das ferramentas usadas pela inteligência artificial hoje funcionam em software de código aberto. O que as grandes empresas fazem é pegar isso, bloqueá-lo e extrair valor dos nossos dados. O problema não é a tecnologia em si, mas como ela é governada e quem se beneficia dela.
As redes são nossas, por Marta G. Franco em (Consonni).
– A Lei da IA entrou em vigor na União Europeia. Qual a importância disso, dada a velocidade da mudança tecnológica?
– O grande desafio da regulamentação é que ela sempre chega tarde. As empresas de tecnologia se movem mais rápido que os Estados. Quando uma lei entra em vigor, as plataformas já encontraram uma maneira de contorná-la. Mesmo assim, a Lei da IA tem aspectos valiosos. Principalmente quando se trata de exigir transparência dos governos quando usam inteligência artificial. A automação dos serviços públicos, a tomada de decisões com algoritmos, exige supervisão dos cidadãos. E esta lei, pelo menos, abre caminho para isso. O problema é que a Europa continua sendo a Europa; sua regulamentação é racista. Ela protege os cidadãos europeus, mas permite exceções para o controle de fronteiras. O que não pode ser feito aos europeus, é feito aos migrantes. E o pior de tudo é que as empresas europeias podem desenvolver sistemas proibidos na UE e depois exportá-los para países do Sul Global. Em outras palavras, o que não é adequado para um francês pode ser vendido para um argentino.
–Você acha que existem condições sócio-históricas para uma real politização do descontentamento de que falamos?
– Eu não ousaria responder com sim ou não. O que eu sei é que, se esse momento chegar, será necessária uma internet livre. Espaços digitais que nos permitam nos encontrar, debater e nos organizar. Sem isso, não há possibilidade de resposta coletiva. A internet não é mais importante do que outras lutas — feminista, climática, antirracista —, mas é uma ferramenta fundamental para todas elas. Se não lutarmos para mantê-la aberta e habitável, as outras lutas também perderão força. É hora de cuidar desse território novamente.
– Como você vê o futuro? Para que tipo de sociedades estamos caminhando?
– A curto prazo, o que se avizinha é o colapso das principais plataformas. As grandes empresas de tecnologia mudaram seu foco para a Inteligência Artificial. Não haverá mais uma única rede social onde "estamos todos juntos", como o Twitter já foi. As vidas digitais se tornarão fragmentadas. E isso tem aspectos negativos, mas também uma oportunidade: um alcance menor pode significar maior profundidade. Estamos diante de uma mudança de paradigma. A era dos vídeos virais e milhões de seguidores não engajados está chegando ao fim. O que está por vir é a construção de comunidades digitais menores, porém mais fortes. Voltaremos a fóruns, listas e espaços onde a qualidade da conexão importa mais do que o número de curtidas. Não será um futuro espetacular. Mas pode ser mais humano.
- Residente na internet desde 1999, ele trabalhou na Indymedia, em vários hackmeetings e hacklabs em centros sociais ocupados e em uma tentativa de criar uma rede social gratuita chamada Lorea/N-1.
- Viveu intensamente o movimento 15M, coordenou a seção de tecnologia do jornal Diagonal e foi mediadora no centro de cultura digital Medialab-Prado.
- Seu mandato municipal a levou a assumir a responsabilidade pelas mídias sociais e pela comunicação política do Município de Madri.
- Ultimamente, ela continua se esforçando para manter a internet um lugar habitável e trabalha com organizações sociais, quase sempre com o coletivo de pesquisa e estratégia digital Laintersección.
As redes são nossas , por Marta G. Franco em (Consonni).
Clarin