Assim vamos ter de falar de outra maneira sobre felicidade

No episódio publicado a 4 de junho de 2025 do podcast “Assim vamos ter de falar de outra maneira” protagonizado por José Diogo Quintela, Miguel Góis e Ricardo Araújo Pereira, dedicado às “Rochas Ígneas Afaníticas”, em vez de falaram delas, falaram sobre refrigerantes (nomeadamente do bom e velho Um Bongo), sobre uma espécie de Tinder medieval, sobre aviões, sobre mitologia clássica, sobre a doação de corpos à ciência e sobre a felicidade dos finlandeses (não necessariamente por esta ordem).
Primeiro, sendo todos esses temas mais interessantes do que as Rochas Ígneas Afaníticas, acho que fizeram muito bem em ignorá-las.
Da minha parte, o que não consigo ignorar, é a referência à felicidade dos finlandeses.
Deixem-me aproveitar o gozo que fizeram ao facto de os finlandeses serem, consecutivamente, o país mais feliz do mundo para falar um pouco dos porquês.
Para JDQ, MG e RAP, como podem os finlandeses ser felizes quando, e parafraseando: é o país que, em janeiro e fevereiro, tem uma temperatura média de -5º; no inverno tem dias que duram menos de 6 horas; no verão, a temperatura máxima deles é 20º; é a nação cuja prato favorito é rena salteada; têm uma das maiores taxas de suicídio do mundo; tudo funciona na Finlândia, mas tem de funcionar, porque não se aguenta doutra maneira; se calhar o que lhes perguntam nestes inquéritos à felicidade é: “o senhor é feliz?” E a resposta é: “para finlandês, sim”; se calhar, fazem a pergunta nos 10 min de verão que têm;
Lá pelo meio, reconhecem “que é uma nação rica, prospera e com uma moral sexual muito relaxada, o que é excelente”.
Finalmente, indagam: quais são os critérios, o que é que significa, o que conta para a felicidade?
De facto, a Finlândia localiza-se numa região do globo com condições climatéricas que parecem muito desfavoráveis para se ser feliz. Depois, também não são reconhecidos internacionalmente por uma gastronomia diversificada e apetitosa (principalmente vendo daqui, por quem foi criado na dieta mediterrânica que, sabemo-lo bem, é das melhores do mundo). E também não são famosos pela sua personalidade aberta e calorosa. Então, como raio se sentem felizes?
Deixem-me começar pelo princípio: nos inquéritos internacionais sobre felicidade, a pergunta tipo é do género: “Tendo tudo em conta, qual é o seu nível de satisfação com a vida atualmente? Responda numa escala entre 0 e 10, em que 0 é ‘nada satisfeito’ e 10 é ‘completamente satisfeito’”. E é a partir da resposta que os inquiridos na amostra dão a esta questão que se constrói a média da felicidade de cada país. Portanto, sim, é uma perceção subjetiva de felicidade, mas é mesmo isso que se quer medir, e não tem critérios nenhuns predefinidos. Ou seja, cada pessoa responde a esta pergunta de acordo com a sua sensação, e com os seus critérios, não cabendo a quem está a conduzir o estudo predefinir se aquele indivíduo tem, ou não tem, isto ou aquilo para se concluir que ele, ou ela, é feliz. O que décadas de investigação já permitiram concluir é que a resposta a esta questão não é aleatória, antes pelo contrário, tem elevado valor informativo, que permite comparações interpessoais, intertemporais e interculturais. Ou seja, a sensação de felicidade é uma coisa (mensurável e universal, assim com a temperatura corporal) os seus determinantes são outra (assim como há muitas razões diferentes para alguém ter febre).
Assim, o que estes estudos fazem (nomeadamente o World Happiness Report) é criar relações estatísticas entre esta perceção e um conjunto de outras variáveis para se perceber o que, em média, faz as pessoas sentirem-se felizes. E, apesar de cada indivíduo poder ter os seus determinantes específicos de felicidade (um pode deliciar-se com arenque – ouvir o podcast citado – enquanto outro precisa de muitas horas de sol) estas relações médias são muito informativas. E o que é que elas nos dizem? Que uma nação, tipicamente, precisa de: rendimento (medido pelo PIB per capita), suporte social, expectativa, à nascença, de vida longa e saudável, liberdade, generosidade e baixa perceção de corrupção. E querem saber: A Finlândia tem tudo isso: está em segundo lugar no índice do suporte social e no da baixa perceção de corrupção, em quarto lugar no índice de liberdade, em décimo quinto no PIB pc, em décimo oitavo na esperança média de vida saudável e só está mal, em quinquagésimo sexto, na generosidade.
Mas, se quiserem atender apenas a indicadores objetivos, também temos: a Finlândia está no décimo segundo lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (que junta rendimento nacional, taxas de escolarização e esperança média de vida) e em primeiro no Sustainable Development Report que avalia o grau de cumprimento de cada nação face aos dezassete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.
Quanto ao suicídio, se é verdade que o Lesoto é campeão, não é verdade que a Finlândia tenha uma taxa muitíssimo elevada: está em trigésimo segundo, muito atrás da Coreia do Sul (em segundo na lista), e atrás de muitas outras nações desenvolvidas, e com melhor clima, como a Eslovénia, a Bélgica, o Japão, a França, a Croácia, os EUA ou a Estónia. E só três pontos acima da taxa de suicídio portuguesa, por cada cem mil pessoas.
E sim, mais um dado objetivo, as pessoas querem mais ir para lá viver, do que de lá fugir: a Finlândia tem tido taxas de imigração líquidas.
Quanto o sol e à boa comida, não são determinantes para sustentar uma nação feliz (a ciência tem-no demonstrado), apenas bons critérios para escolhermos o nosso destino de férias.
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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
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