E se a nova direita conquistar o poder na europa?

Se partidos como o Reform de Farage, o Rassemblement National de Marine Le Pen, a AfD na Alemanha e o governo de Giorgia Meloni em Itália, entre outros, assumirem simultaneamente o poder, a Europa entrará numa fase de rutura histórica com o consenso liberal-progressista que dominou o continente desde o pós-guerra, particularmente desde os anos 80 e, sobretudo, desde o Tratado de Maastricht. Este cenário significaria um abalo profundo no projeto europeu tal como o conhecemos. O modelo dominante da integração supranacional, da mobilidade irrestrita, do liberalismo económico e da hegemonia cultural progressista seria radicalmente rejeitado.
Essa chegada ao poder seria também a grande prova de fogo desta contestação antissistema, que podemos definir como a direita política autonomizada da direita tradicional do sistema. Estes partidos começaram por obter margens de votos de um dígito, passaram para dois dígitos e é previsível que se tornem as forças políticas mais votadas. No entanto, continuam bloqueados enquanto não alcançarem maiorias absolutas. Estão em ascensão graças a um discurso de rutura que colide inevitavelmente com instituições nacionais e europeias estruturadas para impedir essa mudança. Basta lembrar os confrontos recentes da Comissão Europeia com a Hungria e a Polónia, onde foram aplicados cortes de fundos e processos por violação do Estado de direito, para perceber até que ponto Bruxelas dispõe de instrumentos eficazes de pressão sobre governos soberanistas. Tribunais constitucionais, conselhos de Estado, elites administrativas, mediáticas e financeiras, profundamente alinhadas com a ortodoxia liberal-progressista, tentarão impor limites claros à ação destes governos.
O caso italiano ilustra bem esse risco: Giorgia Meloni viu os mercados reagirem de imediato à sua eleição, forçando-a a moderar parte da agenda orçamental e fiscal. Na zona euro, o Banco Central Europeu e os mercados reagirão de imediato contra políticas orçamentais e fiscais contrárias ao que podemos designar como o consenso liberal europeu. Mesmo fora dele, como no caso britânico, os constrangimentos financeiros e diplomáticos podem ser significativos e de desfecho imprevisível.
Além disso, os eleitorados que elegem estes partidos exigem simultaneamente mais soberania, mais proteção económica e menos imigração — três dimensões difíceis de conciliar. Assim, mesmo com vitórias eleitorais expressivas, a verdadeira batalha será institucional. Conseguirão estes governos governar contra a rede de constrangimentos criada pelo modelo europeu das últimas décadas? Será um braço de ferro em que qualquer cedência será considerada uma derrota.
Se França, Reino Unido, Alemanha e Itália forem governados por partidos soberanistas, a própria União Europeia enfrentará um momento de colapso funcional, mas também conhecerá o desafio de uma reformulação profunda. O atual eixo Paris-Berlim, que sustenta o equilíbrio de poder, deixaria de existir tal como o conhecemos. Poderíamos assistir a vários desfechos possíveis. O primeiro seria uma reconfiguração interna da UE, com a soberania nacional a ganhar primazia, repatriando competências, reforçando o controlo de fronteiras e revendo os tratados. O segundo seria um cenário de bloqueio institucional crónico, com países soberanistas em confronto permanente com Bruxelas, incapazes de alcançar consensos decisivos. O terceiro, mais radical, seria uma fragmentação acelerada, em que um conjunto de países poderia abandonar a UE ou criar um bloco alternativo, estabelecendo uma espécie de Europa a duas velocidades: um núcleo duro progressista e federalista e uma aliança soberanista empenhada em recuperar competências nacionais.
A prioridade soberanista concretizar-se-ia em linhas determinantes. O controlo das fronteiras e da imigração seria central. A livre circulação dentro da Europa seria limitada e, em países como França, haveria políticas migratórias restritivas, invertendo décadas de abertura. Os fluxos ilegais cairiam de forma significativa, mas o confronto com ONGs, tribunais europeus e organismos de direitos humanos tornar-se-ia permanente. Conheceríamos também o crescimento de economias protecionistas. A lógica do mercado único seria substituída por um nacionalismo económico pragmático, com cada país a recuperar instrumentos fiscais e monetários sempre que possível, privilegiando empresas nacionais, indústrias estratégicas e cadeias produtivas locais. O pós-Maastricht traria subsídios estatais, barreiras comerciais seletivas e reindustrialização interna.
Haveria igualmente uma autêntica revolução cultural e axiológica nos programas educativos, nos meios de comunicação e nas instituições culturais. Governos soberanistas financiariam institutos nacionais de identidade e implementariam políticas educacionais centradas na história, nos valores e na cultura próprias de cada nação. A batalha contra as agendas identitárias, as políticas DEI e a ideologia woke atingiria um novo patamar, criando uma contra-hegemonia cultural. Seguir-se-ia uma profunda reforma do Estado e dos sistemas judiciais, reconfigurando órgãos de regulação e enfrentando diretamente a elite administrativa que governava por inércia. Esta desprogressização institucional geraria fortes reações: protestos massivos, greves e campanhas internacionais de deslegitimação.
Esta viragem política teria também um enorme impacto no plano geopolítico global. A relação com os Estados Unidos seria profundamente alterada, pois uma Europa soberanista procuraria reduzir a sua dependência estratégica de Washington, reconfigurando a NATO e introduzindo tensões internas, sobretudo na Alemanha e em França. A política externa em relação à Rússia também mudaria: partidos como o RN e a AfD defendem uma postura mais pragmática, o que poderia enfraquecer a frente atlântica e reabrir canais diplomáticos. Quanto à China, é provável que uma Europa soberanista adote uma posição realista e menos ideológica, procurando acordos estratégicos sem subordinação política. Tal aceleraria a transição para uma ordem mundial multipolar.
Neste momento, a Europa é relevante sobretudo no plano simbólico. O seu maior ativo continua a ser um mercado de consumo de grande escala, mas a importância política e económica do espaço europeu diminuiu significativamente em relação a outras potências e blocos. A ascensão da China, da Índia, de vários países asiáticos e a reafirmação dos EUA demonstram que a ideia de uma América que, para voltar a ser grande, percebe que tem de se virar para dentro e reconstruir a sua força interna para recuperar a hegemonia mundial parece hoje já inalcançável.
Um ponto tão ou mais decisivo do que o económico é institucional, cultural e axiológico. Mesmo que os soberanistas conquistem o poder, o establishment progressista não desaparecerá. Controla universidades, meios de comunicação, redes sociais, ONGs, organismos internacionais, tribunais e boa parte da burocracia europeia. É altamente provável que surjam campanhas permanentes de deslegitimação, instabilidade social fabricada com movimentos de rua instrumentalizados, guerras judiciais e intensa pressão diplomática. Governar contra esta máquina exigirá destes partidos uma coesão estratégica e narrativa que ainda estão longe de demonstrar.
Teremos, neste momento, duas Europas em confronto: uma Europa soberanista, mais realista, centrada na defesa das identidades nacionais, no controlo de fronteiras e na primazia da democracia interna; e uma Europa globalista-progressista, composta por Bruxelas e resistindo ferozmente à fragmentação. O desfecho dependerá da capacidade destes governos de articular uma visão comum e de resistir à sabotagem interna e externa. Para que esta mudança resulte, e aguardando ainda o desejável fim da invasão russa da Ucrânia, será necessária uma estratégia de longo prazo, coesão entre governos soberanistas, formação de quadros competentes e, acima de tudo, a capacidade de criar uma nova narrativa civilizacional que resista à pressão mediática e cultural do sistema.
Caso contrário, o risco é evidente: depois de um breve ciclo de governação, o progressismo poderá regressar mais centralizador, mais autoritário e mais intrusivo do que nunca. Se falharem, arriscam-se a ser apenas um interlúdio turbulento; se tiverem sucesso, poderemos assistir ao nascimento de uma nova Europa das nações. Pela primeira vez desde a queda do Muro de Berlim, o futuro do continente deixou de estar escrito.
Jornal Sol