<![CDATA[ O bichinho sonsinho ]]>
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Começa a ser um padrão: um jornalista questiona Luís Montenegro sobre os seus negócios particulares ou a sua dança com (ou contra) a Entidade para a Transparência. O primeiro-ministro não responde, não esclarece, não comenta. Sai então uma notícia que demonstra mais uma tentativa do chefe do Governo se fechar ao escrutínio público e pôr em recato os seus interesses e património. E então sim, salta Luís Montenegro para a frente de todas as câmaras e microfones, a desmentir a notícia e dar os “esclarecimentos” que recusara antes.
Foi o que aconteceu na última semana, com o Correio da Manhã a noticiar o pedido feito por Montenegro para sonegar da sua declaração de património a informação sobre os 55 prédios, rústicos e urbanos, de que é detentor. Mais uma vez, o primeiro-ministro não respondeu às questões do jornal. Esperou que a notícia saísse para lançar uma reação que já vem sendo a sua especialidade: a “negação-que-não-nega”. Desta vez, indicou que não se opôs à divulgação de todo o seu património imobiliário, só aos detalhes de alguns imóveis mais sensíveis, alegando questões de privacidade e segurança. A verdade é que a rasura da Entidade para a Transparência aplica-se a todos os imóveis do primeiro-ministro, não só a alguns. Resta saber se por iniciativa de Montenegro, ou por incúria ou incompetência da Entidade.
Seja como for, teria sido fácil ao primeiro-ministro esclarecer isso a tempo da notícia original, reconhecer que pediu a reserva de dados da sua declaração (no todo, ou em parte) e justificar-se. Em vez disso, preferiu calar-se primeiro e emitir depois um desmentido mal-amanhado, que visa passar a ideia de que o chefe do Governo é um campeão da transparência, assediado pela má imprensa.
O que leva alguém a, recorrentemente, negar respostas quando lhe são pedidas, e vir no dia seguinte chorar que a história está mal contada? Simples: Luís Montenegro não quer esclarecer factos ou prestar contas. Quando recusou resolver os conflitos de interesses criados pela Spinumviva, o primeiro-ministro sabia que o assunto não iria morrer. Que, a qualquer altura, algum jornalista insistente continuaria a escavar nas avenças e no património da família, ou na relação cada vez mais esquiva do primeiro-ministro com a Entidade da Transparência; e iria fazer mais perguntas. Daí a estratégia: confundir, enfadar e iludir.
É o que verdadeiramente se pretende com estas reações indignadas ao retardador. A estratégia comunicacional do Governo alimenta uma narrativa de vitimização, sempre que alguém pergunta sobre conflitos de interesses. Luís Montenegro surge então, com ar sofrido, a dizer ou sugerir que são os jornais que insistem em litigar um assunto que o povo já absolveu nas urnas, reclamando uma amnistia ao escrutínio público e à prestação de contas. E se não for culpa da imprensa, é da própria Entidade, que leva longe demais os pedidos que recebe e troca os pés pelas mãos. Por um lado ou por outro, Montenegro lamenta-se, confunde, enfada, ilude. Isto não é um acaso.
Nem a receita é nova, apenas aprimorada. Por estes dias, José Sócrates está de volta ao Campus de Justiça, descarregando arrogantemente o seu desprezo por quem o acusa – e pela verdade factual que ele vai reescrevendo com a naturalidade de um sociopata.
Recorda-nos o “animal feroz” que atacava jornalistas, condicionava órgãos de informação e tentou controlar, mobilizando capitais amigos, qualquer voz incómoda. Luís Montenegro está, pelo que sabemos, muito longe do nível “socrático” de intimidação e condicionamento. Mas a adoção de uma estratégia evidente de conflito com a imprensa, em vez de esclarecimento e abertura, é um sintoma preocupante de uma sintonia de posições sobre o papel do jornalismo e da prestação de contas numa sociedade plural e minimamente arejada.
Muda o estilo. Se José Sócrates continua a ser o “animal feroz”, Luís Montenegro é o bichinho sonsinho. Não levanta a voz nem lança impropérios contra quem o questiona, mas tem a mesma abordagem hostil às perguntas dos jornalistas e a mesma tática de reduzir o escrutínio democrático a vagas teorias da conspiração que visariam não deixar “o Luís trabalhar”. Entre os dois, claro que antes Montenegro do que Sócrates, dadas as diferenças. Mas as semelhanças deviam ser suficientes para, enquanto sociedade, não permitirmos que os vícios alastrem.
sabado