Pode a Inteligência Artificial curar o cancro?

Durante três semanas, em maio de 2024, funcionários do gigante IA Nvidia e da Recursion Pharmaceuticals dormiram no chão de um centro de dados em Salt Lake City, no estado norte-americano do Utah. A sua missão era construir uma máquina que a Recursion, empresa de biotecnologia com uma década de vida, acredita lhe dará vantagem na competição para desenvolver os próximos grandes medicamentos: o BioHive-2, o maior e mais rápido supercomputador, propriedade de uma biofarmacêutica. É uma aposta audaciosa de que o futuro da indústria farmacêutica dos Estados Unidos da América dependerá tanto do poder da computação como do talento científico.
Há uma razão para ter pressa: há vários anos que se procura desenvolver medicamentos com base em Inteligência Artificial (IA), mas desde que o ChatGPT chegou à consciência pública, no final de 2022, a esperança e o entusiasmo em torno do seu potencial atingiram um pico febril. A questão a que os mundos da tecnologia e da medicina pretendem responder é esta: quando é que a IA levará a sua magia para o negócio longo, difícil e terrivelmente dispendioso da investigação e desenvolvimento farmacêutico?
Será possível ‒ como admite Sam Altman, diretor-executivo (CEO) da OpenAI ‒ que um dia bastará simplesmente pedirmos ao ChatGPT que cure o cancro, a doença de Alzheimer ou qualquer outra patologia humana intratável?
Investimentos colossaisA corrida para chegar a este cenário de ficção científica está bem encaminhada. Em junho de 2023, investiram-se mais de 18 mil milhões de dólares [quase 16 mil milhões de euros] em cerca de 200 empresas de biotecnologia AI first, isto é, que colocam a Inteligência Artificial no centro das suas decisões e operações, e pelo menos 75 medicamentos ou vacinas destas empresas entraram, em janeiro de 2024, na fase de ensaios clínicos, segundo o Boston Consultant Group. A Citeline, por seu turno, uma empresa que analisa o mercado farmacêutico, contou 446 rondas de financiamento no setor das ciências biológicas impulsionadas pela IA, num total de 30,6 mil milhões de dólares [quase 27 mil milhões de euros], desde 2020.
A Recursion espera liderar o pelotão num domínio que, até agora, tem sido mais promissor do que eficaz. Embora tenha havido um boom de compostos descobertos pela IA, até à data nenhum deles chegou ao mercado como medicamento aprovado. A maioria ainda está nas fases iniciais de desenvolvimento, e alguns fármacos descobertos pela IA sofreram o mesmo destino terrível de muitos outros desenvolvidos de modo tradicional: falharam nos ensaios clínicos em humanos.
É muito cedo para julgar todo um setor com base nestes contratempos, mas muitos têm sido tentados a fazê-lo, dadas a expectativas elevadíssimas geradas pelos admiradores da IA e o êxito dos grandes modelos de linguagem. Isto deixa a indústria numa posição difícil: a Inteligência Artificial Generativa, na sua forma atual, é construída principalmente em torno do processamento da linguagem, e não provou ser muito útil no mundo das moléculas ‒ pelo menos ainda não.
Mais rápido e mais baratoSeja como for, mesmo que não esteja a produzir novos medicamentos, não há dúvida de que a IA tem vindo a alterar significativamente esse processo. O desenvolvimento de fármacos modernos é uma atividade loucamente eficiente. Demora, em média, mais de uma década e uns 2,6 mil milhões de dólares [cerca de 2,3 mil milhões de euros] até criar um único medicamento. E não há certeza de que um medicamento será aprovado pela agência federal norte-americana Food and Drug Administration (FDA): apenas 5% dos medicamentos experimentais que os cientistas concebem em laboratório chegam a esta meta.
A IA pode ajudar ‒ e ajuda cada vez mais ‒ a fazer este trabalho de uma maneira mais rápida, mais barata e com mais probabilidades de sucesso. Muitas empresas farmacêuticas garantem à Fortune que a Inteligência Artificial já está a poupar dinheiro de diversas formas. Por exemplo, a companhia norte-americana Moderna Therapeutics, importante fabricante de vacinas contra a Covid-19, utilizadora de ferramentas de aprendizagem automática há quase uma década, cita uma série de casos de utilização, desde otimizar o design da sequência do RNA mensageiro (mRNA) até redigir um formulário de regras com várias centenas de páginas. O que antes envolvia uma equipa inteira, requer agora apenas uma pessoa para rever o trabalho do computador.
A visão de empresas como a Recursion é, porém, muito mais ambiciosa. A sua aposta é a de que, ao associar grandes quantidades de dados científicos a novas e robustas ferramentas informáticas, a IA poderá desvendar os mistérios da Biologia e desenvolver medicamentos para curar as doenças que nos afligem.
À semelhança da OpenAI, que colocou o texto do mundo num modelo de linguagem de grandes dimensões para criar o ChatGPT, a Recursion acredita que, ao alimentar o supercomputador BioHive-2 com os seus dados celulares e médicos, que rapidamente se acumulam, poderá abrir a Biologia ‒ fornecendo os conhecimentos, que há muito escapam aos humanos, necessários para compreender patologias difíceis de tratar, do cancro a doenças neurodegenerativas e autoimunes.
Riqueza de dados
Entre os investidores otimistas que acreditam nesta tese está Jensen Huang, fundador e CEO da Nvidia ‒ a terceira empresa mais valiosa do mundo, líder mundial em computação de IA ‒ que investiu na Recursion 50 milhões de dólares [44 milhões de euros], em 2023. Em junho passado, num encontro com funcionários e investidores em biotecnologia, Huang comparou a oportunidade da Recursion à da Nvidia no início da revolução dos chips, há algumas décadas. “Este é, para vós, um tempo tão divertido… Tenho inveja”, disse-lhes. “Vocês poderão estar a um ou dois cliques de distância de conseguir realmente compreender o sentido da vida.”
De certo modo, a Recursion, com 11 anos de existência, 800 funcionários e zero medicamentos aprovados, é um administrador improvável do computador mais potente da indústria farmacêutica. Em 2024, esta “TechBio” ‒ como prefere designar-se ‒, obteve receitas inferiores a 59 milhões de dólares [quase 52 milhões de euros] e registou um prejuízo líquido de $464 milhões [€408 milhões]. Nos primeiros tempos da empresa, Chris Gibson, o CEO e cofundador, previu muitas vezes que ela iria desenvolver 100 medicamentos em dez anos. Mas, tal como todas as IA nativas [ou “nativas de IA” – empresas que têm a Inteligência Artificial incorporada na sua essência], ainda só está a criar o primeiro.
A riqueza invulgar da Recursion está nos dados. Todas as semanas, os robôs dos seus laboratórios automatizados realizam 2,2 milhões de experiências ‒ transferindo diversas soluções experimentais para amostras de células em miniatura ‒, cada uma delas resultando numa imagem de alta resolução que capta morfologia e características celulares pormenorizadas. São experiências que podem ser executadas em 50 tipos de células humanas e recorrem a milhões de compostos, milhares de modificações genéticas e mais de um bilião de neurónios gerados em laboratório.
“Arriscar onde outros têm medo”O que importa não é o resultado de uma única experiência, mas sim explorar os dados de muitas delas. A estas resmas de dados juntam-se os vídeos transmitidos 24 horas por dia dos laboratórios de animais da empresa, onde foram instaladas câmaras em centenas de gaiolas de ratos e ratazanas, para analisar com maior precisão as alterações comportamentais induzidas pelos medicamentos. Na última contagem, a Recursion gerou 40 petabytes [unidade de armazenamento] de dados digitais de mais de 300 milhões de experiências. Não tem planos para abrandar ‒ e é por isso, obviamente, que precisa de um supercomputador.
“Esta pequena empresa… está a arriscar onde outros têm medo”, afirmou Chris Gibson perante uma plateia de investidores. “Fizemos estes investimentos porque acreditamos que a intersecção de dados e computação é o futuro desta indústria. E tencionamos ser líderes.”
A Recursion enfrenta uma concorrência feroz. Continuam a surgir novos participantes nesta indústria, com bolsos cada vez mais fundos e nomes mais sonantes. A Insitro, empresa fundada em 2018, em São Francisco (Califórnia), por Daphne Koller, pioneira da IA, é apoiada por numerosos investidores em biotecnologia e está avaliada em 2,4 milhões de dólares [2,11 milhões de euros]. A Xaira Therapeutics, cofundada por um prémio Nobel da Química, David Baker, foi lançada, também em São Francisco, com mil milhões de dólares de financiamento, em abril de 2024. E, no final de janeiro, o fundador do LinkedIn, Reid Hoffman, anunciou uma parceria com o oncologista Siddhartha Mukherjee, CEO da startup Manas AI e vencedor de um prémio Pulitzer com o livro O Imperador de Todos os Males: Uma biografia do cancro, para desenvolver medicamentos contra esta doença.
Fintar a sorteChris Gibson está maravilhado com a mudança quase repentina no interesse da indústria em comparação com o ceticismo desdenhoso com que se deparou há apenas alguns anos. “A maior parte das vezes, riam-se de nós”, recorda. Mas, o ano passado, quando ele apareceu com Jensen Huang, CEO na Nvidia, numa conferência sobre saúde organizada pelo JPMorgan Chase, o maior banco dos Estados Unidos da América, encontrou uma sala repleta de diretores-executivos da Big Pharma, ansiosos por ouvir a sua proposta.
Durante muito tempo, o desenvolvimento de novos medicamentos dependeu de uma combinação de observação astuta e sorte. Os antigos descobriram, por acaso, que folhas de salgueiro e de murta ‒ os precursores naturais da aspirina ‒ aliviavam a febre e as dores nas articulações. O físico inglês Edward Jenner criou a vacina contra a varíola ao constatar que pessoas que trabalhavam com gado e tinham sido expostas à varíola bovina não eram afetadas pelo vírus. E o anticoagulante varfarina surgiu da investigação sobre uma epidemia da “doença do trevo doce infetado” que matou, devido a hemorragias internas, uma população de vacas leiteiras no Wisconsin.
No final do século passado, os avanços na genética e na biologia molecular permitiram que os cientistas concentrassem os seus esforços de um modo mais preciso, identificando alvos biológicos e planeando medicamentos para alterar o curso das doenças. Ainda assim, este continua a ser, em grande medida, um processo de tentativa e erro, que se desenrola ao longo de muitos anos e muitas fases ‒ da descoberta e conceção do medicamento ao desenvolvimento pré-clínico (teste de segurança e eficácia de compostos em células e animais) até aos ensaios clínicos em que um medicamento experimental é testado em pessoas em três fases sucessivas.
Surpreendentemente, 90% de todos os candidatos a medicamentos falham em seres humanos, o que significa que apenas um em cada 10 medicamentos passa por esta fase até à aprovação ‒ mesmo depois de terem sido gastos milhões de dólares.
Futuro mais próximoDado o statu quo, se a Inteligência Artificial pudesse ajudar a prever melhor quais os medicamentos que, provavelmente, funcionarão ou os que não irão resultar ‒ poupando tempo e investimento em fracassos dispendiosos na fase final da investigação e aumentando a percentagem de sucesso ‒, isso faria uma diferença significativa. “O que eu digo sempre à equipa é: se 80% dos nossos medicamentos falharem nos ensaios clínicos, somos duas vezes melhores do que a média da indústria [farmacêutica], e poderemos ser a empresa mais inovadora neste setor”, salienta Chris Gibson, o CEO da Recursion.
Um futuro em que os computadores prevejam, ou criem, o nosso próximo medicamento bem-sucedido parece mais próximo do que nunca, graças a algumas descobertas tecnológicas recentes notáveis, desde modelos linguísticos de grande dimensão, como o ChatGPT, a ferramentas de “revolução da resolução”, como a técnica de microscopia crioeletrónica [“modalidade da imagiologia essencial ao estudo das estruturas das moléculas biológicas e complexos macromoleculares no seu ambiente fisiológico”] , que dotaram os cientistas com dados mais produtivos.
Acrescente-se ainda o AlphaFold, programa de Inteligência Artificial desenvolvido pela DeepMind, subsidiária da Alphabet Inc., que prevê com bastante exatidão a estrutura de mais de 200 milhões de proteínas, incluindo as dezenas de milhares que se encontram nos seres humanos. Agora conhecida como Google DeepMind, a primeira interação estreou-se em 2020; os seus principais arquitetos ‒ David Baker, Demis Hassabis e John M. Jumper ‒ ganharam o Prémio Nobel da Química em 2024.
Uma nova revolução
Alguns acham que estas inovações colocaram a indústria à beira de um aumento de produtividade sem precedentes; outros consideram que se trata de um momento sobrevalorizado no longo processo de uma mudança gradual. Este grupo dirá que a IA é apenas a mais recente palavra de ordem para uma tecnologia em evolução que se espera vir a revolucionar a sua área. (Exemplos: aprendizagem automática, grandes volumes de dados e, recuando no tempo, o modelo QSAR ou “relação quantitativa/qualitativa estrutura-atividade”.)
Esta é, decerto, uma revolução que há muito se avizinhava, uma revolução a que a Fortune dedicou uma capa, em outubro de 1981, com um artigo sobre um medicamento que a multinacional farmacêutica alemã Merck concebeu em computador. O título era: “A próxima revolução industrial.”
Desde então, computadores e dados têm desempenhado um papel na pesquisa de novos medicamentos, mas a sua utilização não se traduziu, até agora, em ganhos generalizados de produtividade em investigação e desenvolvimento (I&D). De facto, nas últimas sete décadas, a indústria farmacêutica tem vivido o oposto, com a produção de novos medicamentos a demorar mais tempo e a tornar-se mais dispendiosa.
O número de novos medicamentos aprovados por cada mil milhões de dólares gastos em I&D cai para metade a cada nove anos, aproximadamente. Este fenómeno até tem um nome: Lei de Eroom. “Eroom” é Moore ao contrário, uma referência à Lei de Moore, sobre o aumento da velocidade no desenvolvimento de chips para computadores, evidenciando a trajetória oposta na inovação farmacêutica.
Para esta tendência são apontadas várias razões: uma delas é que a regulamentação governamental é agora mais rigorosa. Mas as dificuldades com a I&D resumem-se principalmente à nossa compreensão limitada da Biologia: já resolvemos as coisas fáceis. Solucionar problemas mais difíceis exige novas informações e modelos biológicos ‒ e, de um modo geral, investimos pouco nesta ciência, explica Jack Scannell, o especialista em produtividade da I&D que cunhou o termo Lei de Eroom. “Ficamos com doenças em que os modelos nos dão frequentemente a resposta errada.”
Convergência de tecnologiasA Ciência é extremamente desafiante, dada a natureza vasta, multifacetada e heterogénea da biologia humana. Aviv Regev, diretora de investigação e desenvolvimento com base em IA da empresa de biotecnologia Genentch, em São Francisco, diz que o trabalho da indústria do medicamento num cenário tão amplo é como “procurar debaixo de vários postes de iluminação ‒ um pouco aqui, um pouco ali, um pouco acolá”.
É neste ponto que Regev considera que a convergência das novas tecnologias com a perspicácia humana está a mudar o jogo: sozinhos, os cientistas não conseguem dar sentido às quantidades explosivas de dados biológicos que têm agora à sua disposição, mas uma Inteligência Artificial treinada com esta informação ‒ desde imagens de alta resolução de neurónios a sequências genéticas e registos de doentes ‒ poderá ajudar os investigadores a encontrar padrões e a estabelecer ligações para chegar a novos conhecimentos, necessários para compreender as doenças e desenvolver medicamentos para as tratar.
Se 80% dos nossos medicamentos falharem nos ensaios clínicos, somos duas vezes melhores do que a médiada indústria
Chris Gibson, CEO da Recursion
Mas, será que podemos confiar na Inteligência Artificial ‒ conhecida por alucinações noutros domínios ‒ para nos dar boas informações sobre, por exemplo, a química cerebral por detrás da depressão? Ou o funcionamento interno de uma célula cancerígena?
Para garantir o controlo e o equilíbrio, Regev promove um método de funcionamento amplamente adotado por esta indústria, conhecido como lab-in-the-loop, em que as previsões de um modelo de IA são testadas num laboratório físico. Os dados destas experiências reais são depois introduzidos no modelo, pelo que a Inteligência Artificial está constantemente a aprender e a aperfeiçoar-se, para fazer previsões melhores e mais exatas.
As experiências, acrescenta Regev, têm de ser realizadas em grande escala para colher os benefícios, treinar modelos eficazes e trabalhar mais depressa e melhor. A Genentech estabeleceu uma parceria com a Recursion em alguns destes trabalhos, que a bióloga nascida em Israel descreve como promissores. “Assistimos a uma biologia que já era conhecida dos especialistas na área das doenças, bem como a uma biologia potencialmente convincente que não era conhecida até agora.”
Ideia diferenteFoi em 2013 que Chris Gibson teve a ideia de criar a Recursion, quando fazia investigação na Universidade do Utah para o seu doutoramento sobre o Angioma Cavernoso do Sistema Nervoso Central, uma doença neurovascular rara que afetará mais de um milhão de pessoas no mundo. Não existe tratamento para esta malformação designada por CCM, que pode causar hemorragias e acidentes vasculares cerebrais (AVC), e desenvolver uma terapia tem sido um método difícil e trabalhoso ‒ exigindo primeiro a identificação de um alvo molecular e depois um medicamento para interagir significativamente com ele.

Gibson teve uma ideia diferente. Utilizando um novo software de análise de imagens de aprendizagem automática chamado CellProfiler pôde comparar imagens de células doentes e saudáveis ‒ e ver se algum composto restaurava a saúde das células enfermas. Com esta técnica, Gibson encontrou dois possíveis medicamentos que pareciam tratar o CCM: a vitamina D e o composto orgânico Tempol, conhecido pelas suas propriedades antioxidantes.
Foram apenas “sucessos”, candidatos a medicamentos que precisavam de ser testados e mais refinados, mas que pareciam auspiciosos. Gibson questionou-se se poderia aplicar o mesmo método a outras doenças de cura difícil. Em 2013, abandonou a faculdade de Medicina para fundar a Recursion com um dos seus professores, Dean Li (hoje presidente da Merck Research), e com um amigo, Blake Borgeson, com ambições de industrializarem a descoberta de medicamentos.
Progressos e revesesOnze anos após a sua criação, a empresa continua a trabalhar para introduzir no mercado o REC-994 ‒ o composto que entusiasmou Gibson quando fazia uma pós-graduação. Em setembro de 2024, quando a Recursion anunciou, pela primeira vez, os resultados de um estudo da Fase 2, envolvendo 62 participantes, o medicamento revelou-se seguro e sem efeitos secundários ‒ era este o objetivo do estudo ‒, mas dados preliminares de eficácia pareceram mistos. Embora ressonâncias magnéticas a pacientes tenham sugerido que a medicação estava a resultar até certo ponto, médicos e pacientes não constataram quaisquer melhorias. As ações da Recursion caíram quase 17% num só dia.
No início de fevereiro deste ano, quando a empresa divulgou dados precisos, mas não estatisticamente significativos, indicando que os doentes também estavam a registar uma melhoria funcional, as ações da Recursion subiram 2,7%. Perante a inconsistência do mercado, Chris Gibson encolhe os ombros. “Sinto-me encorajado com o que conseguimos demonstrar”, disse ele à Fortune, por email, em fevereiro. “Acredito que temos um potencial medicamento num espaço que poucos tentaram explorar.”
A Recursion está a discutir os próximos passos com a FDA ‒ há desafios com um medicamento de primeira classe, como descobrir a melhor maneira de medir a sua eficácia clínica ‒, ao mesmo tempo que avança com outros sete medicamentos que estão a ser testados, para doenças como o cancro, a C. difficile (infeção bacteriana persistente que causa diarreia e pode ser fatal), ou a neurofibromatose tipo II (doença caracterizada pelo crescimento de tumores não cancerosos no sistema nervoso).
Alguns consideram que os resultados pouco animadores da Recursion fazem parte de um padrão no setor. A BenevolentAI, criada em 2013 no Reino Unido, onde tem sede, e avaliada em 2 mil milhões de dólares, interrompeu o trabalho de desenvolver o seu candidato mais avançado, um medicamento para eczemas, quando os pacientes de um estudo da Fase 2 não apresentaram melhorias clínicas em 2023. Devido a estes resultados, as ações da BenevolentAI caíram mais de 80% e, após duas vagas de despedimentos, o valor de mercado da empresa que se define como “líder global no desenvolvimento e aplicação da Inteligência Artificial à inovação científica” aproxima-se dos 13 milhões de dólares [pouco mais de 11 milhões de euros]. Também a Exscientia, fundada em 2012 e outrora avaliada em 3 mil milhões de dólares [2,6 mil milhões de euros], abandonou dois dos seus programas na fase final de desenvolvimento; em setembro de 2024 fundiu-se com a Recursion Therapeutics.
A Insilico Medicine, empresa de biotecnologia sediada em Boston, que afirma ser a primeira empresa a ter um medicamento descoberto e concebido por IA em estudos da Fase 2, gaba-se de, em apenas 18 meses (a média nesta indústria é de 4,5 anos), ter levado a molécula do conceito aos testes em seres humanos. O fundador e co-CEO, Alex Zhavoronkov, lembra-se de que o responsável pelo departamento de I&D o acordou com um telefonema às 2 horas da madrugada para partilhar, entusiasmado, os resultados preliminares do estudo em doentes com fibrose pulmonar idiopática (FPI). Esta doença rara, mas cada vez mais prevalente, afeta cerca de 3 milhões de pessoas em todo o mundo. Endurece o tecido pulmonar, deixando-o com cicatrizes e, geralmente, conduz à morte em poucos anos.
Competição de alto riscoEm novembro último, a Insilico divulgou publicamente os resultados daquele estudo que envolveu 71 pacientes em vários locais da China. Os dados mostraram que o medicamento era seguro e, apesar de os resultados não serem estatisticamente significativos, os doentes deram-se bem com o fármaco ‒, registando melhorias na função pulmonar correspondente à quantidade de medicamento que receberam durante 12 semanas. “Não esperávamos ver isto em tão pouco tempo”, disse-me Zhavoronkov, no outono passado. Um outro estudo da Fase 2 do medicamento decorre nos EUA.
Por mais preliminares que sejam estas descobertas, Alex Zhavoronkov exalta os resultados da Fase 2 como “um marco crítico na descoberta de medicamentos com tecnologia de Inteligência Artificial”.
Uma investigação do Boston Consulting Group sugere que a IA está a retirar alguma incerteza ao processo de ensaios clínicos. Esta firma de consultoria analisou as linhas de produção de mais de 100 empresas de biotecnologia nativas de IA e descobriu que tiveram uma taxa de sucesso de 80%-90% nos testes da Fase 1 (pequenos estudos de segurança), o que é consideravelmente melhor do que a média desta indústria: apenas 40%-60%. Nos estudos da Fase 2, as taxas de sucesso já são mais comparáveis. Ainda não existem dados que permitam tirar conclusões sobre a Fase 3.
Quem beneficiará da melhoria da eficiência da IA e será a primeira empresa a colocar no mercado um medicamento totalmente descoberto pela Inteligência Artificial? Alguns afirmam que os gigantes farmacêuticos estão em vantagem nesta corrida, devido aos seus consideráveis recursos e ao facto de terem grandes quantidades de dados de propriedade exclusiva [protegidos por lei ou contrato], que podem usar para treinar uma IA. Mas, salientam outros, maior não significa necessariamente melhor neste setor: muitos dos dados das Big Pharma são confusos e não estão padronizados, exigindo uma limpeza considerável antes de serem utilizados para estes fins. Além disso, é complexa a mudança organizacional necessária para reformular uma grande operação de I&D.
Entretanto, as startups nativas de IA, como a Recursion, têm vindo a criar de raiz bases de dados expressamente com o propósito de os alimentar com Inteligência Artificial, e a recrutar equipas “bilingues” ‒ engenheiros informáticos, biólogos e químicos ‒ que acreditam ser as mais adequadas a este trabalho.
Visitei a sede da Recursion num dia de calor abrasador, em junho de 2024, para o Download Day, a atualização anual do estado da biotecnologia, evento dirigido a investidores no qual discursou Jensen Huang, o CEO da Nvidia. Situados num bairro gentrificado no centro de Salt Lake City, os escritórios da empresa ocupam uma antiga loja Dick’s Sporting Goods [o maior retalhista de produtos desportivos nos EUA]. Entre os reluzentes laboratórios robotizados e uma área com secretárias para os funcionários, há uma enorme parede de escalada de três andares ‒ uma benesse recreativa e talvez uma metáfora para o caminho íngreme e humilde que tem pela frente uma empresa de descoberta de medicamentos de IA, como a Recursion.
Quase no topoTendo em conta a desconexão entre as expectativas inflacionadas em relação às mudanças impulsionadas pela IA e a realidade de que levará tempo a cumprir as promessas, o mercado parece inseguro sobre como deve avaliar uma empresa como a Recursion.
Há quatro anos, nos dias turbulentos da pandemia de Covid-19 e pouco depois de ter entrado na Bolsa de Nova Iorque, a Recursion tinha um valor de mercado de 7 mil milhões de dólares [cerca de 6 mil milhões de euros]. Agora, depois de um “inverno biotecnológico” em Wall Street, a Recursion trabalha em cerca de 20 programas de desenvolvimento pré-clínico e clínico, e vale $2,1 mil milhões [€1,85 mil milhões].
A empresa alargou consideravelmente a sua plataforma ao adquirir várias outras companhias e capacidades, ao formar parcerias notáveis com a indústria farmacêutica, atraindo o investimento invejável de 50 milhões de dólares da Nvidia, acumulando quantidades absurdas de dados e, claro, construindo o maior supercomputador para os processar. “Estamos a trabalhar arduamente nisto”, declarou Chris Gibson sobre o BioHive-2, durante uma teleconferência sobre os resultados da Recursion, em fevereiro, revelando que a equipa vai construir novos modelos de biologia com todo este poder computacional. “A Recursion está vários anos à frente de quase todos os outros neste espaço”, exultou.
A verdadeira corrida para empresas como a Recursion poderá ser contra o tempo: os investidores estão inquietos e sedentos de provas. Alex Zhavoronkov, da Insilico, acredita que o ceticismo em relação à indústria persistirá até que ela apresente um “êxito de bilheteira” gerado pela Inteligência Artificial, mas o CEO incentiva investidores e o setor a concentrarem-se em referências baseadas em dados em vez de rondas de investimento extravagantes.
A história da Recursion representa a natureza esperançosa e singela da sua missão ‒ mas também a coragem necessária e a arrogância inevitável daqueles que a assumem. A Biologia é maravilhosamente complexa e o desenvolvimento de medicamentos é inacreditavelmente difícil. Os recursos (e a paciência dos investidores) são limitados ‒ e mesmo com as tecnologias mais inteligentes e de ponta, determinadas fases do processo demoram imenso tempo. A IA pode revolucionar a indústria farmacêutica, e a Recursion pode ser a vencedora. Mas, para já, ainda há muito trabalho para os humanos fazerem.
Chris Gibson é sincero no que diz respeito ao ponto em que a sua empresa se encontra nesta viagem. Ao apresentar a sua proposta durante o Download Day, o CEO usou um diapositivo para mostrar o progresso tecnológico na indústria dos transportes e comparou o lugar da Recursion ao Modelo T [da Ford, que, em 1909, “democratizou o automóvel]: à frente do cavalo, mas longe do Tesla dos tempos modernos. “Estamos a mudar radicalmente o modo como se descobre e desenvolve a medicina”, declarou perante a plateia de investidores. “Mas ainda temos um longo caminho a percorrer.”
Ao final daquele dia, Huang, da Nvidia, ofereceu uma visão mais otimista. “Tu és aquela pega amarela; estás perto”, disse ele a Gibson, apontando para um ponto de apoio no cimo da parede de escalada da empresa. “Para os que não conseguem ver”, esclareceu Gibson, “Isto é quase o topo.”

Artigo publicado originalmente na Exame de maio de 2025
Visao