Sem carga para mais

A carga continua a ser o “patinho feio” da indústria aérea e mesmo enquanto consumidores só nos lembramos dela quando recebemos uma encomenda online. Mas por trás desse pequeno momento de felicidade está todo um setor demasiadamente desvalorizado e esquecido.
Em várias companhias aéreas – sobretudo nas estatais – o departamento de carga é visto como uma espécie de de última classe onde se sentam por vezes funcionários e quadros que foram negligentes noutros serviços ou que se incompatibilizaram com as suas chefias no negócio de passageiros. Sem o glamour dos assentos de primeira classe e das viagens instagramáveis dos seus passageiros, a carga aérea vive fora do radar das eleições, sem grande visibilidade nos contextos políticos, infraestruturais ou de política pública. Isto acontece mesmo num país como Portugal onde o investimento público milionário na aviação se justifica como uma forma de combater uma localização dita periférica e de reforçar as nossas exportações... Na prática, o setor não tem qualquer acompanhamento e está agora mais do que nunca entregue à sua sorte... ou, melhor dizendo, ao seu azar.
Há mais de uma década que a APAT (Associação dos Transitários de Portugal) alerta para a total falta de investimento nos terminais de carga dos aeroportos de Lisboa e do Porto e que resulta em situações de carga amontoada e espalhada fora do perímetro de segurança e com condições inadequadas, que forçam as empresas a redirecionar volumes exportados por via terrestre para Espanha ou para outros pontos da Europa e daí seguirem por avião. Também a Autoridade Tributária, com os seus procedimentos aduaneiros desajustados, desempenha um papel fundamental na redução da complexidade e no aumento da competitividade do setor.
Foram justamente as recentes falhas informáticas da AT que condicionaram as exportações e que quebraram algumas cadeias logísticas; do lado do operador aeroportuário que gere o terminal de carga, a situação reportada é de caos com direito a taxa já que a Menzies passou a cobrar uma taxa adicional de 30 euros, sobre a qual foi apresentada uma queixa formal pela APAT.
Por ser uma área sem protagonismo mediático, a carga aérea escapa ao populismo eleitoralista e isso dá espaço a práticas abusivas por parte de oligopólios operacionais e ao esquecimento por parte das entidades e instituições monopolistas. Ignorado por quem estabelece políticas públicas, o negócio da carga aérea fica exposto a cobranças de atores com poder económico, muita ineficiência e pouca concorrência. E não, nada disto que se passa a norte e a sul do país se resolve com um “novo” aeroporto de Lisboa em 2035.
Que a carga aérea ajuda a exportar valor, encurtar distâncias e a complementar a rentabilidade dos voos de passageiros, disso não tenho a menor dúvida. Só não consegue encurtar a distância até à prioridade política.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo
sapo