Álbum de família

Os Paiter Suruí, habitantes da Terra Indígena 7 de Setembro, na região fronteiriça entre Rondônia e Mato Grosso, atravessaram mais da metade do século XX isolados. O contato oficial da Funai com esse povo Tupi data de 1969. Com os brancos chegaram as doenças, a evangelização e também um objeto: a câmera fotográfica.
“Meu povo, durante muito tempo, teve medo da fotografia, por achar que ela roubava a nossa alma”, conta, passadas cinco décadas, Ubiratan Suruí, primeiro fotógrafo profissional do povo, e autor de algumas das imagens presentes na exposição Paiter Suruí, Gente de Verdade: Um Projeto do Coletivo Lakapoy, em cartaz a partir do sábado 26, no Instituto Moreira Salles da Avenida Paulista, em São Paulo.
A mostra reúne mais de 900 imagens feitas, em sua maioria, pelo povo Paiter Suruí desde os anos 1970 até hoje. Trata-se de um acervo inédito e surpreendente de fotografias recolhidas pelo Coletivo Lakapoy – do qual Ubiratan faz parte – em diversas aldeias.
Nele está registrado um dia a dia que os fotógrafos não indígenas, mesmo os mais engajados e conscientes, nunca conseguiram captar. “Quando a gente é retratado por pessoas de fora, as imagens mostram o que é o indígena para essas pessoas”, diz Ubiratan. “E aí sempre vai ter cocar, pintura, adornos no corpo… Nesta exposição, não. Tem a gente jogando futebol.”
A mostra tem curadoria da líder e ativista Txai Suruí, outra integrante do Coletivo Lakapoy, da arquiteta, pesquisadora e curadora indígena Lahayda Mamani Poma e de Thyago Nogueira, coordenador da área de Arte Contemporânea do IMS. “Temos, pela primeira vez, uma exposição feita totalmente em primeira pessoa”, faz questão de ressaltar Lahayda.
O ponto de partida foi a Bolsa ZUM/IMS, um programa de fomento à produção artística. Em 2019, alguns dos integrantes do Coletivo Lakapoy – que ainda não tinha esse nome – se inscreveram no edital com um projeto de digitalização de imagens. Embora não tenham sido escolhidos, chamaram atenção e Thyago Nogueira resolveu procurá-los.
A mostra do IMS reúne registros cotidianos do povo Tupi feitos desde a década de 1970
Dois anos depois, algumas das fotografias foram publicadas na revista ZUM. Em 2023, o coletivo foi selecionado para a bolsa. Com os recursos, eles puderam viajar para outras aldeias, comprar um novo scanner e até mesmo aprender diferentes técnicas de digitalização.
Nas imagens expostas, a passagem do tempo evidencia-se, por exemplo, no bolor que a umidade da floresta torna incontornável e que a digitalização não corrigiu. As fotos estavam guardadas nas casas de algumas famílias, em álbuns, caixas e estantes – poucas vezes expostas em porta-retratos.
“A maioria das famílias, na verdade, não guardava as fotografias”, conta Ubiratan, reconectando-se com a própria origem de seu ofício. Perpera, protagonista do filme Ex-Pajé (2017), dirigido por Luiz Bolognesi, conta que, ao verem a câmera do fotógrafo Jesco von Puttkamer, que participou do contato da Funai, os homens da aldeia empunharam arco e flecha, achando que havia uma arma apontada para eles.
“Depois, quando ganhou alguma confiança, Jesco passou a usar o flash”, prossegue Ubiratan. “Mas, para eles, parecia um raio, e por isso achavam que o espírito da pessoa fotografada seria roubado. E guardar as fotos de quem morreu, assim como as roupas, também não era um hábito porque é preciso deixar a pessoa descansando para que a alma dela não fique vagando.”
Não deixa de ser curioso pensar no quanto as fotografias, de forma geral, realmente “roubaram” dos indígenas suas almas – no sentido de eles não terem jamais se reconhecido nas imagens feitas por não indígenas: “Essa exposição é um marco porque essas imagens mostram a gente como a gente se vê, e não como imaginam que somos”.
Em busca de si. Agamenon e Ubiratan Suruí, pai e filho, reúnem material para o projeto do Coletivo Lakapoy, que recolheu e digitalizou mais de 900 imagens – Imagem: Acervo/Coletivo Lakapoy
Lahayda chama atenção para o fato de a equipe ter feito todo o esforço para identificar cada um dos retratados, ter as autorizações de uso de imagem assinadas e remunerá-los pelo direito. “Era muito importante sair do registro etnográfico”, diz ela. “Ter as legendas das fotos em primeira pessoa faz parte desse processo. Quando você define o retratado de maneira étnica, e não humana, a primeira pessoa não cabe.”
As legendas, escritas por Ubiratan a partir das conversas com as famílias Paiter Suruí, adicionam uma camada histórica muito forte àquilo que se vê.
A acompanhar, por exemplo, o registro de um dos primeiros indígenas a estudar na escola de campo Monteiro Lobato, na década de 1990, há uma legenda que conta que o retratado caminhava 10 quilômetros para lá chegar. Os conflitos entre a cosmogonia indígena e as novas religiões são relatados sob a foto da igreja batista da aldeia, onde o desenho de um demônio encobre a imagem de um indígena que cometeu homicídio.
Casamentos, diferentes espiritualidades, aniversários, batizados e competições esportivas são outros momentos cotidianos detalhados nesse grande álbum de família que ocupará as paredes do IMS até 2 de novembro. Mas também há, como não poderia deixar de ser, o registro dos desafios e violências decorrentes dos contatos com os não indígenas.
“Meu povo, durante muito tempo, teve medo da fotografia”, conta Ubiratan
“Historicamente, sofremos com invasores de todos os tipos, que atacam não só os indígenas, como também as árvores”, lê-se em outra das legendas. A pressão sobre os Paiter remonta à passagem do século XIX para o século XX, quando a construção da estrada de ferro Madeira–Mamoré e a instalação das linhas telegráficas pelo Marechal Rondon impulsionaram o fluxo migratório para Rondônia.
Com a expansão agrícola, a partir das décadas de 1950 e 1960, explodiram os conflitos fundiários e as ameaças às terras indígenas. Após o primeiro contato, surgiram também o sarampo e a gripe, que dizimaram parte do povo. Foi a partir dos anos 1980 que alguns jovens Paiter, já então familiarizados com o português, passaram a se organizar e a lutar por direitos junto à Funai e aos governos.
Ubiratan Suruí, que nasceu em 1992, é hoje uma liderança de seu povo. Para seguir estudando, ele deixou a aldeia natal rumo à cidade de Cacoal (RO) na adolescência. Aos 17 anos, começou a utilizar a fotografia e a comunicação como forma de afirmação dos direitos indígenas.
A exposição, em seu núcleo contemporâneo, tem não só fotos recentes tiradas por Ubiratan, mas depoimentos e vídeos dos influencers Oyorekoe Luciano Suruí e Samily Paiter. Tudo isso se mistura a redes, cestos e colares que, agora, ganham novos e mais complexos sentidos. •
Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Álbum de família’
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