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Lautréamont. A juventude profana

Lautréamont. A juventude profana

Regressa às livrarias, coroando o selo da Maldoror, a tradução de Pedro Tamen da obra cuja fúria destruidora ressoa desde finais do século XIX e que marcou decisivamente toda a literatura desde então, uma obra que, nesta sua quarta edição, se faz acompanhar da cirúrgica intervenção de René Magritte, uma série de desenhos raspados à unha nas paredes do quarto onde aquele uivo dilacerante por estes dias volta a ouvir-se segundo a entoação e o ódio de cada novo leitor.

Lautréamont mostrou-se presciente ao declarar: “Na hora em que escrevo, novos arrepios percorrem a atmosfera intelectual; trata-se apenas de ter coragem para os encarar de frente.” Ao mesmo tempo, e olhando à sua volta, numa carta que escreveu em 1870, exprimia um desdém enorme pelo estado da poesia: “Os gemidos poéticos deste século não passam de hórridos sofismas. Cantar o tédio, as dores, as tristezas, as melancolias, a morte, a sombra, o obscuro, etc., significa não querer senão olhar, obrigatoriamente, o reverso pueril das coisas. Lamartine, Hugo, Musset metamorfosearam-se voluntariamente em meninas. São as Cabeças Moles da nossa época. Sempre a choramingar!” Cabia-lhe a ele, com pouco mais de vinte anos, provocar uma mudança em relação à pesada letargia daquele ambiente, causando “um curto-circuito maciço” (Soupault). Se Apollinaire não teve dúvidas em afirmar que a juventude lhe devia mais a ele do que a Rimbaud, foi Breton quem melhor se deu conta das infindáveis consequências da irascível epopeia que ele tinha lançado como uma praga na literatura francesa, uma obra supremamente desmoralizadora para o prestígio literário: “O verbo, já não entendido como estilo, entra numa crise fundamental com Lautréamont; assinala um novo começo. Os limites dentro dos quais as palavras podiam relacionar-se com palavras, e as coisas com coisas, chegaram ao fim. Um princípio de mutação perpétua apoderou-se tanto dos objectos como das ideias, tendendo para a sua libertação total — o que implica também a do homem. Neste sentido, a linguagem de Lautréamont é simultaneamente um solvente e um plasma germinal sem equivalente.” Mas em termos propriamente críticos, deixando de lado a sofreguidão apostólica, foi preciso esperar por 1950 e pelo Lautréamont e Sade, de Blanchot, para que tudo ficasse mais claro. Blanchot foi o primeiro a reconhecer como o personagem principal dos Cantos é o leitor — o leitor em que Lautréamont se transforma ao escrever a sua espantosa aventura. Há uma “lógica implacável” em acção nas trevas do Mal, como haverá uma lógica igualmente implacável na apologia do Bem. O homem é mau, quem o criou é mau, todas as estrofes impecavelmente febris dos Cantos lembram-no com uma mestria matemática do delírio, servida por um humor terrorista. É sério? Sim, muito. É cómico? Igualmente. Eis o que desorienta para sempre o ser humano. A partir daqui impera o óxido da dúvida, que actua sobre tudo e nunca mais permitirá que seja o que for assuma uma potência incontestável. A própria ideia do clássico estava a ruir de forma acelerada. Mas por meio dessa inversão tumultuosa, ao dar primazia ao leitor, entrava-se num capítulo realmente prometedor… Venha ele, exigia Lautréamont, e comparecia nessa condição, avisando: Está na hora de corroer o discurso e o método, não decidir sobre onde começa ou acaba, antes, que cada um se aproxime pelo lado que mais o instigue. Nada de cronologias, baralho tão misturado que nem vale a pena. Lugares, nomes – só para nausear ainda mais as certezas. A dúvida, sim, permite abrir sempre novos caminhos. E, assim, tu também decidirás o que te apetecer. Ali surgia um romance virado do avesso, que fornecia a chave para revirar tudo, um anti-romance, um curso que segue por meio do desvio, como um enredo que por todos os meios se furta a ser condicionado pela razão, antes preferindo trazer a guerra. Dá-se ou não, deixando margem para que venham outros à boleia. É uma estrada, mas não leva a lado nenhum. E sem dúvida que tinha febre. Estava consumido por uma obstinação delirante, e talvez esse grau de alucinação lhe permitisse ver e ouvir aquilo que, de outro modo, não se vê nem se ouve. Os Cantos são cartas de um leitor a outros, anunciando um princípio de insurreição em relação aos textos, à consagração, essa estima e admiração petrificadora. São cartas absolutamente desmedidas, que nos mostram como o pior, o mais intolerável seria esse movimento contínuo, esse regime dos autores, a monumentalidade dos feitos literários. A partir daqui será a audácia, o atrevimento a ir à frente. Todas as liberdades podem ser tomadas, sem obter licença. Mais vale também apagar a soma oca dos nossos pronomes. Não se deve culpar ninguém, trata-se de um desacato necessário, que ganha em ser levado a cabo por todos. “O que ele procura”, diz-nos Blanchot, “é uma luz igual em todos os seus pontos, a mesma para todos, e onde, estando todos reconciliados, o “todos” seja, para cada um, a verdade de que o “cada um” seria a aparência completa.” Pois bem, aí vemos esse impulso truculento, esse gesto que repugna os esquemas e as histórias literárias, que passam a ser algo que deve dispensar-se. Aragon, num duplo artigo retumbante, reagindo a um livro que retratava os antecedentes do movimento surrealista, foi levado a rememorar a sua juventude, o encontro com Breton aos 20 anos, no Val-de-Grâce: as vigílias enquanto médicos auxiliares no “quarto dos febris”, entre os loucos. Recordou como ficaram varados com os Cantos de Maldoror, como os recitavam em voz alta durante os bombardeamentos alemães sobre Paris. “Às vezes, atrás das portas trancadas, os loucos uivavam, insultando-nos, golpeando as paredes com os punhos. Isso dava ao texto um comentário obsceno e surpreendente.” É Breton, pouco depois, em 1919, quem copia integralmente as Poesias na Biblioteca Nacional. Estas são finalmente publicadas na revista Littérature: o movimento está lançado.

Mas de quem escreveu essa obra que quase se perdia, para de súbito reemergir com uma ênfase e uma influência estarrecedoras, daquele que a redigiu a horas que ninguém sabe num quarto num quinto andar, o que se sabe? Apenas algumas informações longínquas e indirectas, demasiado lacunares, e que reforçam o buraco onde se pregou o único retrato que temos de Isidore Ducasse. E este tudo parece ter feito para ser real apenas nas palavras, sendo essa a única substância da sua vida. Assim, daquele que primeiro se serviu do anonimato, e que ao lançar a edição d’Os Cantos completos (1869) assinou como “conde de Lautrèamont”, ao mesmo tempo que do desvairado Maldoror fazia uma ambígua projecção de si mesmo, sabemos que nasceu em Montevidéu, de pais franceses, em 1846, e que ficou órfão de mãe quando contava ainda meses. Aos 13 anos, foi enviado pelo pai para fazer os estudos em França. Interno em dois liceus, depois surge outro vazio, um largo período no qual lhe perdemos o rastro. Mas talvez devamos começar pelo fim. Sabe-se que às oito da manhã de 24 de novembro de 1870, com 24 anos, Ducasse morreu no quarto de hotel em Paris que ia pagando com a mesada que o pai lhe enviava. Na época, com a França em guerra e a capital sitiada por batalhões prussianos, a fome, o frio e as febres faziam da morte uma ocorrência demasiado comum, os cemitérios pareciam gulosos. Daquele rapaz, nem o túmulo foi alguma vez encontrado. Supõe-se que tenha morrido tísico, sendo o corpo inumado numa sepultura provisória, antes de ser transferido para uma vala comum algumas semanas mais tarde, que era então o procedimento mais comum num contexto de propagação epidémica da tuberculose. Assim, como vinca Blanchot, “o fim de Lautréamont conserva algo de irreal”. “Atestado apenas pela palavra da lei e pela breve menção na certidão de óbito, ‘falecido… sem mais informações’, tão colado à banalidade quanto é possível, parece que esse fim falta, como se não precisasse de acontecer para ter lugar. E foi através desse seu fim, tão estranhamente apagado, que Lautréamont se tornou, para sempre, nesse modo invisível de aparecer que é a sua figura solitária, e foi no anonimato da morte que, aos olhos de todos, finalmente se manifestou, como se, ao desaparecer numa tal ausência radiante, tivesse então encontrado a morte, mas, também, na morte, o instante exacto e a verdade do dia.”

Com a publicação de um opúsculo com o primeiro Canto em 1868, Ducasse apresenta-se aos hipotéticos leitores sob o signo de três estrelas («***»), introduzindo este subterfúgio que lhe permitia abstrair-se, colocando em primeiro plano esse «Maldoror», cuja exaltada aparição surge como um elemento de sublevação, numa insolência que vem parodiar os elementos do mito, produzindo um efeito de choque que, fez dele, segundo Gracq, “o grande descarrilador da literatura moderna”. Colocando num mesmo nível o fluxo de sangue, de humores, essa colaboração entre paciência e violência que é o nascer, Lautréamont parecia repelir definitivamente Isidore Ducasse, dando-se à luz, como sugere Blanchot. “Mas, para aquele que quer tornar-se senhor da sua origem, logo se torna evidente que nascer é um acontecimento infinito.” Convocando todo um bestiário de forma a dar curso aos seus impulsos agressivos, ele vai servir-se dessas “formas animais puerilmente observadas” como instrumentos de ataque e de transubstanciação. Assim, toma a iniciativa mais radical. Isto porque em Lautréamont, como vinca Gaston Bachelard, a palavra encontra imediatamente a acção. “Certos poetas devoram ou assimilam o espaço; dir-se-ia que eles têm sempre um universo para digerir. Outros, muito menos numerosos, devoram o tempo. Lautréamont um dos maiores devoradores do tempo. É nisso que consiste o segredo da sua insaciável violência.” E se os acontecimentos que nele se esboçam opõem seres sem qualquer medida comum com a humanidade aparente de Isidore Ducasse, para Bachelard o fascínio desta fábula inumana prende-se à forma como nos faz reviver “os impulsos brutais que se encontram, tão fortes ainda, no coração dos homens”. Ao longo destas páginas, Maldoror torna-se águia, caranguejo ou lavagante, abutre, grilo, polvo, tubarão — o cabelo toma a palavra — a lâmpada nada ou voa com asas de anjo. E como refere Gracq, “o traço mais constante desses seres instáveis, e seu significado profundo, é provavelmente o de manifestar a possibilidade de uma vida anfíbia — que todo o génio de Lautréamont se esforça por legitimar — sempre a extrair oxigénio entre duas águas: entre a gratuidade do sonho inofensivo e uma possibilidade de irrupção angustiante no mundo onde estamos tão bem sentados. A passagem do fantasma ao monstro encontra-se assim consumada graças à transmissão exemplar do sopro vital.”

Mas porquê todo este novelo de citações? Seria um tanto absurdo querer vir hoje transmitir algo desse enlevo cataclísmico que cerca Lautréamont ao leitor português quando este vê reaparecer a melhor tradução que se fez dos Cantos e das Poesias, pela primeira vez acompanhados dos tão cúmplices e ferozes desenhos de René Magritte, sem lhe dar conta daquilo que esta foi capaz de desencadear, tomando o pulso a leituras que, mais do que forçar pela goela do público esta obra supremamente indigesta, se revezaram repercutindo de forma magnífica as possibilidades daquele enredo, de tal modo que alguns desses que se sentiram compelidos a comentar e acompanhar este movimento, fazendo-o com um fervor exemplar, pareciam estar empenhados em dar-lhe seguimento, como se lhe adoptassem e adaptassem o impulso, alimentando a expansão deste recital diabólico. No fundo, o que esta obra quer é meter-se debaixo da pele do leitor, sobrecarregar-lhe os nervos, fiar um estímulo atrás de outro, sendo um motivo de escândalo íntimo, e marcando um ritmo estranho a tudo, uma poesia da excitação, que busca esse vigor e velocidade poética, a de um tempo que morre. Assim, esta vem dar-nos caça, vem e deixa a impressão de que “um pesadelo empunhou a pena”, tornando-se tão mais irrecusável “pela sua extensão e desenvolvimento (pois a duração é essencial neste esforço), do que As Iluminações de Rimbaud”, como nos diz Blanchot. “É por isso que nos parece tão importante ler Maldoror como uma criação progressiva, feita no tempo e com o tempo, um work in progress, uma obra em curso que Lautréamont conduz sem dúvida até onde quer, mas que também o conduz aonde ele não sabe, da qual pode dizer: ‘Sigamos a corrente que nos arrasta’, não porque se deixe levar à deriva por uma força cega e furiosa, mas porque essa força ‘arrastadora’ da obra é o seu modo de estar à frente de si mesma, de se preceder — o próprio porvir da sua lucidez em transformação.”

“– Em que estás tu a pensar, menino?

– Estava a pensar no céu.

– Não precisas de pensar no céu; já basta pensar na terra. Estás cansado de viver, tu que ainda há pouco nasceste?

– Não, mas todos preferem o céu à terra.

– Ah, mas eu não. É que, se o céu foi feito por Deus, como a terra, podes estar certo que encontrarás lá os mesmos males deste mundo. Depois da tua morte, não serás recompensado segundo os teus méritos, porque, se forem injustos contigo aqui na terra (como mais tarde hás-de sabê-lo por experiência), não há qualquer razão para que o não sejam também na outra vida. O melhor que tens a fazer é não pensares em Deus e fazeres a tua própria justiça, visto que os outros ta recusam. Se um dos teus colegas te ofendesse, não gostarias de o matar?

– Mas é proibido.

– Não é assim tão proibido como julgas. Só o que é preciso é não te deixares enganar. A justiça das leias não vale nada; o que conta é a jurisprudência do ofendido. Se detestasses um dos teus colegas, não ficarias infeliz só por imaginares que em cada instante podes ter o pensamento dele diante dos teus olhos?

– Isso é verdade.

– Ora aí tens um dos teus colegas a tornar-te infeliz toda a vida; pois, ao ver que o teu ódio é só passivo, não deixará de continuar a fazer pouco de ti e acausar-te mal impunemente. Só há, portanto, um meio de acabar com a situação: desembaraçares-te do teu inimigo. Era aqui que eu queria chegar para te fazer compreender em que bases está fundada a sociedade actual. (…) Quando o pastor David atingiu o gigante Golias na testa com um a pedra lançada com a funda, não é admirável notar que foi só pela astúcia que David venceu o adversário, e que se, pelo contrário, tivessem entrado em luta corpo a corpo, o gigante o teria esmagado como a uma mosca. O mesmo se passa contigo. Em guerra aberta, nunca poderás vencer os homens, aos quais desejas impor a tua vontade; mas com astúcia, poderás lutar sozinho contra todos. (…) Os meios virtuosos e bonacheirões não levam a nada. É preciso utilizar alavancas mais enérgicas e mais sábios enredos. Antes de te tornares célebre pela virtude e de atingires o teu objectivo, haverá cem que terão tempo de fazer piruetas por cima das tuas costas e de chegar ao fim da corrida antes de ti, de tal modo que deixará de haver lugar para as tuas ideias estreitas. É preciso saber abarcar com mais amplitude o horizonte do tempo presente.”

Pressentimos o elemento de pavor de um argumento blasfemo que se vai desenrolando, e a cada curva, com cada nova sugestão, ganha impulso, bebe o êxtase no seu embalo colérico, na ânsia de vingança, colocando na sua base um sentimento de ódio, fazendo do seu grito um largo enredo, um modo de embriaguez. E, como se receasse perder a coragem, o elemento bestial surge a guiá-lo, como se invocasse esses signos agressivos, de forma a marcar essa virulenta intolerância às fraquezas humanas, a essa condição que ele pretende por todos os meios aviltar. Assim, como esclarece Bachelard, “é por dentro que a animalidade é observada em flagrante no seu gesto atroz, irremediável, nascido de uma vontade pura”. E adianta que é “a partir do momento em que se pode criar uma poesia da violência pura, uma poesia que delira com as liberdades totais da vontade” que devemos considerar Lautréamont um precursor. Outras leis regem este imenso quarto onde se respira um ar negro que altera os pulmões, que vai transformar os centros nervosos, sendo as ideias conduzidas a um sensualismo dinâmico e feroz, a uma exaltação que, como um álcool, desfaz essas inibições de ordem moral que nos tornam, por fim, seres tão dóceis, tão comovidos com a sua ingenuidade, e tão fáceis de ludibriar. Ele parece reconhecer que um certo elemento sensível serviu para viciar-nos num conjunto de noções que fazem de nós presas para aqueles que se libertaram desses complexos. Assim, dirigindo-se àquele que desde sempre acreditou que é composto de bem e de uma mínima quantidade de mal, e que vive por isso em desacordo com os seus impulsos, vem ele bruscamente demonstrar que é, pelo contrário, composto só de mal e de uma mínima quantidade de bem, cativando-o para o frenesim da metamorfose que o arranca, por fim, da sua amorfia, tornando-o capaz de realizar actos vigorosos, conquistando um outro movimento, ou seja, um novo tempo. No seu entender, há uma necessidade de libertar essa “resplandecente grandeza”, de o homem se ver a “retomar, como um direito, a (sua) metamorfose destruída”. Assim, invertendo as disposições da moral comum, através de Maldoror, ele oferece-nos esta revelação cheia de consequências: “A metamorfose nunca surgiu aos meus olhos senão como a alta e magnífica retumbância de uma felicidade perfeita que eu há muito esperava. Esta surgiu, finalmente, no dia em que eu fui um porco!”

Não se pode realmente compreender o espectáculo íntimo dessa “catatonia progressiva” (Bachelard) a que os homens se acham entregues, dominados inteiramente por uma lentidão que Lautréamont via como o mais profundo dos males que nos afecta, esse estupor que nos conduz à impotência e submissão, e não se pode admirar a insolência d’Os Cantos sem perceber que a violência é a expressão de um desejo de viver, polarizando as forças vitais, esse ânimo que foi sendo soterrado. Por isso, se dispôs ele a provocar uma segunda queda, e vai perpetrando esta obra infame que instiga esse querer-atacar, e a consequente realização de uma fuga metamorfoseante, para nos servirmos de termos de Bachelard. Assim, e reconhecendo como “o homem morre também do mal de ser homem, de realizar demasiado cedo e demasiado sumariamente a sua imaginação, de esquecer, enfim, que poderia ser um espírito”, surge-nos toda essa “peregrinação indomável”, esta “animalidade polimorfa” que corresponde a formas delirantes, a um elemento sucessivo em que a função inspira e cria o órgão, e aos poucos refaz inteiramente a nossa condição. “O homem aparece então como uma soma de possibilidades vitais”, diz-nos Bachelard, assumindo plenamente o privilégio de fazer sua a invenção do mal.

“Que tinha Lautréamont na cabeça, na noite em que traçou as primeiras palavras: ‘Quisera o céu que…’?”, interroga Blanchot. “Não basta dizer que nesse instante não tinha ainda, completamente formada, a memória dos seis cantos que iria escrever. É preciso afirmar mais: não só os seis cantos não estavam ainda na cabeça, como essa cabeça ainda não existia — e o único fim que ele podia então ter era essa cabeça distante, essa esperança de uma cabeça que, no momento em que Maldoror estivesse escrito, lhe emprestaria toda a força necessária para o escrever. (…) Haverá outra obra que, como esta, sendo por um lado totalmente dependente do tempo, inventando ou descobrindo o seu sentido à medida que se escreve, estreitamente cúmplice da sua duração, permaneça todavia essa massa sem princípio nem fim, essa consistência intemporal, essa simultaneidade de palavras, onde parecem apagadas e para sempre esquecidas todas as marcas do antes e do depois?”

Há aqui uma ruptura que veio a tornar-se um eixo, um nó fundamental na modernidade, e que dependeu desse olhar que supera o “reverso pueril das coisas”, experimentando uma alegria dilaceradora, parecendo ter sido necessário que, para que este acto decisivo se cumprisse, e mesmo assim apenas de forma clandestina e violenta, a literatura o tivesse delegado no jovem filho do Chanceler Ducasse, enviado de Montevideu para França para aí fazer os seus estudos, como sugere Roberto Calasso. Num dos mais apaixonantes ensaios e, possivelmente, um dos últimos que vieram engrossar esse tumultuoso caudal das leituras que procuraram estar à altura daquela profecia malévola, eis como logo no arranque ele procura situar-nos face a outros desacatos que, então, faziam supor um sobressalto geral das consciências: “Existe um ponto zero, um nadir oculto do século XIX que é atingido, sem que ninguém se aperceba, quando um jovem desconhecido publica à sua custa em Paris Les Chants de Maldoror. Estamos em 1969: Nietzsche elabora O Nascimento da Tragédia, Flaubert publica L’Education sentimentale, Verlaine as Fêtes galantes, Rimbaud escreve os seus primeiros versos. Algo ainda mais drástico, no entanto, está a acontecer…” Hoje, já sabemos e, até, para nosso infortúnio, vimos reduzida a mais outra lenda meio retardada o exemplo desse jovem que, aos 23 anos, assumia o pseudónimo Lautréamont, que dizia ter feito “um pacto com a prostituição a fim de semear a desordem entre as famílias”, enquanto fazia o elogio da pederastia, do vampirismo, da crueldade, exortando ao canibalismo, numa sucessão de proferições que hoje são vistas como meio descabeladas, falando-se de uma poesia em prosa bastante falível, mas que exprime ensejo de provocar, o qual terá resistido, como uma lâmpada que balouça infrene no canto mais escuro, deixando entrever esse vulto que parece sorrir e cujo “hálito pernicioso”, à medida que nos aproximamos, se torna cada vez mais pesado. O certo é que Isidore entregou uma avultadíssima soma (quatrocentos francos) ao belga Albert Lacroix, editor de Zola, para que imprimisse Os Cantos, e se os recebeu e fez a impressão, nalgum momento se terá dado conta do risco em que incorreria ao distribuir aquela obra, e arrepiou caminho. Como contará o próprio Lautréamont numa carta, Lacroix “recusou-se a fazer aparecer o livro porque nele a vida estava representada com cores demasiado amargas e temia o procurador-geral”. Era quase certo que se veria enredado num processo, e eram mais do que justificados os seus receios de ver-se alvo de acusações de blasfémia e obscenidade. “Mas porque suscitava Maldoror este medo?”, pergunta Calasso e logo esboça uma resposta: Porque este livro é o primeiro – sem ênfase – a ter por base o princípio de submeter qualquer coisa ao sarcasmo. Não apenas, portanto, o imenso joio da época que fez triunfar o ridículo, mas também a obra por quem o ridículo manifestava todo o seu desprezo: Baudelaire, que será definido com irreverência ‘o mórbido amante da Vénus hotentote’, e que é plausível que fosse o poeta predilecto, o antecedente imediato do próprio Lautréamont.”

E prossegue: “As consequências deste gesto são arrebatadoras: como se todos os dados – e também o mundo é um dado – fossem subitamente arrancados aos seus apoios e começassem a vaguear numa vertiginosa corrente verbal, subindo todos os ultrajes, todas as combinações, por obra de um prestidigitador impassível: o autor vazio Lautréamont, que cumpre um total, frio, cancelamento da identidade, mais rigoroso do que o de Rimbaud, que ainda era teatral. Morrer com vinte e quatro anos num quarto alugado da rue du Fauborg Montmartre, ‘sans autres renseignements’, como se lê no ‘acte de décès’ de Lautréamont, é um risco mais temerário e mais eficaz do que deixar de escrever e ir vender armas em África.”

Há algo de canceroso na mistura arrebatadora que prepara este “lírico negro”, e talvez o segredo que explica o efeito chocante não esteja propriamente nos efeitos de destilação, no apuro de uma poética sagaz e melíflua, mas até no elemento rascante, na composição deslavada, nesse magnetismo de uma metamorfose que absorve e assimila as coisas mais díspares, submetendo o literário a um elemento duvidoso, corrompendo o discurso, com um afã demolidor que se propôs construir sentidos novos ao mutilar sem piedade os conceitos velhos de então. E se, como os sucessivos esforços de dissecação d’Os Cantos o vieram demonstrando, a obra resulta de uma sucessão de pastiches, colagens, inserções inexplicadas de trechos alheios criativamente alterados, o plágio não deixa de ser um dos elementos mais ousados no modo particular de composição assumido por Lautréamont. Se a certa altura Soupault mostrou até como copiou parágrafos inteiros do diário conservador Le Figaro, na verdade isso não belisca minimamente o rasgo de uma obra que nos faz viver a série das formas numa unidade ardente, vertiginosa, que pela sua velocidade nos faz experimentar “a impressão inefável de uma agilidade sensível nas articulações, uma agilidade angulosa”, totalmente oposta ao geral enlevo gracioso desses cultores de um estilo imensamente requintado. Aqui, a força opta pela devoração, com paragens bruscas e irregulares, descontinuidades, um sentido marcado pela predação, e que fica claro na forma como vai incrustrando passagens de outros autores sem citá-los, tendo-se comprovado também como grande parte do bestiário que vem à tona nos “Cantos” as extraiu de descrições científicas, trabalhando-as, alucinando-as. Assim, e na sua vastíssima dieta, Ducasse, além de um voraz leitor de obras de história natural, ainda transportou para ali os mecanismos de mistério próprios das intrigas dos romances policiais ou negros. “É a sua própria linguagem que se torna uma intriga misteriosa”, diz-nos Blanchot, “uma acção maravilhosamente orquestrada como num romance policial, onde as maiores obscuridades são desveladas no momento certo, onde os golpes de teatro são substituídos por imagens, os assassinatos insólitos pelas violências do sarcasmo, e onde o culpado se confunde com o leitor — apanhado sempre em falta.”

Assim, a agressividade da sua metamorfose contempla essa onda magnética que altera drasticamente a própria consistência da tradição e do quadro literário no seio do qual este herói sarcástico emerge. Não basta, por isso, dizer que Lautréamont “associou o seu destino à literatura” na medida em que, através do plágio, procurou “desaparecer na palavra do outro”, como refere Blanchot, isto porque esta nova condição que ele oferece ao leitor permite-lhe afectar profundamente o destino e o sentido das obras. “O plágio é necessário”, defende ele. “É o progresso que o exige. Este segue de perto a frase de um autor, serve-se das suas expressões, e elimina uma ideia falsa, substituindo-a pela noção justa.” Não mais essa figura odiosa do autor estaria defendido no seu estatuto, cabendo-lhe exclusivamente o papel de iluminar e decidir sobre o alcance da sua obra. Tudo passava a estar sujeito a trespasse, a um assalto súbito e capaz de se servir de uma certa persuasão para subverter-lhe os fins. Por isso mesmo, as qualidades que Lautréamont reivindica para si são: atenção fria, lógica implacável, prudência obstinada, clareza arrebatadora… E Blanchot frisa que o sentido destas vai-se robustecendo à medida que se adensa o labirinto do seu fulgor, sendo qualidades que ele declara ter conquistado através do comércio com as santas matemáticas, mas que lhe eram, a princípio, estranhas. Ou seja, o génio já não é condição essencial, e nem mesmo a originalidade, mas aquele frémito de quem assalta e se apossa de forma vigorosa e oportunista do que não lhe pertencia. Há um efeito rapace em que se reconhece como leitor está em condições de submeter um texto a uma profusão de sentidos ulteriores, encaminhando-os segundo uma desordem capaz de os chamar a um efeito de irradiação bem mais inesperado, caótico, ilimitado. Fornecendo-se dos materiais que recobrem essa necessidade de se alimentar e manter uma velocidade e um fulgor que não pode estar a interromper-se para que tudo encontre a sua formulação mais perfeita, arrancando à sua volta os pedaços que lhe fazem falta para se manter em sobressalto, seguindo e sendo seguido, cumulando os efeitos dessa lucidez furiosa, cujo movimento de envolvimento, de abranger, prosseguindo sem tréguas, no fim consegue ser bem mais instigador para quem o lê.

“É como se a própria noção de nível tivesse sido abolida”, adverte Calasso. Isto porque de súbito já nunca mais será tão fácil dizer o que é fica por cima ou por baixo, onde estão verdadeiramente os altos valores, e o que pode ser desprezado, denunciado como matéria rasca. Segundo o próprio, Lautréamont frequentou muito “os escrevinhadores funestos: Sand, Balzac, Alexandre Dumas, Musset, Du Terrail, Féval, Flaubert, Baudelaire, Lecaonte e a Greève des Forgerons”. Já o ensaísta que dirigiu a editora italiana Adelphi, anota como “esta lista deveria avisar-nos logo de que uma armadilha está a ser preparada: o inventor de Rocambole e o de Madame Bovary são colocados no mesmo plano, além do prolífico folhetinista Féval e Balzac, além de Baudelaire e François Coppée”.

Esta é a raiz insaciável e o segredo de uma obra que está constantemente a sacudir-nos, a surpreender por não ficar agarrada a um efeito concludente nem, muito menos, reclusivo, esgrimindo fórmulas cristalinas e convincentes quanto ao conhecimento de que se revestem, antes preferindo atingir-nos nas expectativas que vamos criando, mostrando-se assim bem mais atenta, cercando, tirando-nos “qualquer esperança de dela escaparmos”, afirma Blanchot. “Movimento? Sim, o da imanência, no qual tenta, contudo, recapturar a realidade infinita de uma transcendência que nunca separou de si e da qual se fez tanto cúmplice como adversário. É essa exigência infinita que o leva ao mais baixo (que é também o mais alto), na perspectiva de uma metamorfose em que se quebram os limites da sua pessoa e das servidões da realidade humana — e que o conduz, agora, a uma outra metamorfose: a da banalidade absoluta, onde, desta vez, a aceitação do limite se torna o ilimitado, e onde o movimento que representa o ponto extremo da consciência, da razão e da soberania coincide com o abandono de toda a soberania e de toda a consciência pessoais.”

Respira-se um ar de crime nestas frases, nada se firma numa plenitude demasiado significativa, porque o que é decisivo neste efeito de monstruosidade é esse apelo tenebroso, essa compulsão inexaurível, e, assim, ele faz suceder as suas máximas sombrias que soam como ao reverso de frases emitidas com aquele peso retumbante da cultura que procura imobilizar-nos. Muitas das suas frases são citações adulteradas de moralistas franceses como Vauvenargues, La Bruyère, Pascal e La Rochefoucauld. Vão lá buscar o recorte, raptam o tom de ênfase soberana para o trair, inflectindo-as de forma sediciosa. “Ora vemo-nos no seio de uma consciência sarcástica, superiormente activa e quase impossível de apanhar em falta. Ora essa agilidade omnipresente, esse turbilhão de relâmpagos distintos, essa tempestade acumulada de sentidos já não nos dá a imagem de um espírito, mas antes a de um instinto pesado, cego, de uma coisa compacta — da densidade tenaz própria dos corpos em decomposição, das substâncias tocadas pela morte”, explica Blanchot.

Assim, a experiência central nesta obra é esse volte-face, as incessantes defenestrações de que se mostra capaz uma imaginação que vai mordendo e deixando à sua passagem os sinais de uma agressão incessante, levando a efeito uma manipulação incansável de imagens formidáveis e fascinantes. Trata-se por isso de uma obra poética que leva ao extremo um regime de actuação crítica, que progride por meio da decomposição, revirando, refazendo, traindo e libertando a hipótese escondida, a alternativa. Esse efeito diabólico que procede pela inversão dos signos, pela substituição do sentido original, confere a esta obra uma vertigem inaudita, encorajando um movimento crítico contínuo que nos mostra o potencial de revolta e de profanação que nos abre o jogo de submeter tudo à sua formulação oposta. Lautréamont procede, assim, tanto pelo exagero, como pela imposição de efeitos paródia, ironia, enfatizando o paradoxo essencial de qualquer efeito de autoridade. Também a forma como denúncia a sacralidade da própria ideia de autoria, e, desde logo de originalidade, mostra-se imensamente produtivo, incutindo no leito a noção de que nos deve interessar o que não é nosso, porque nada o é verdadeiramente. A este respeito, e para humilhar mais ainda as consciências que se passeiam virginalmente pelo pântano literário levantando sobre a cabeça a pobre candeia que lhes oferecem noções como a de originalidade, é especialmente útil esta espécie de parábola de Bertolt Brecht: “Hoje em dia”, lamentava-se o senhor K., “pululam os que se gabam publicamente de poder escrever grandes livros sozinhos, e isto é aceite por todos. Ainda na força da idade, o filósofo chinês Chuang-Tsi escreveu um livro de cem mil palavras em que nove décimos era constituído por citações. Nos tempos que correm, livros destes já não se podem escrever, por falta de inspiração. As ideias só se fabricam numa oficina pessoal, e quem não as tiver em quantidade suficiente, será classificado de preguiçoso. A verdade é que assim não há nenhuma ideia que valha a pena ser adoptada, nem pensamentos que valham a pena ser citados. Quão pouco essa gente precisa para funcionar! Uma caneta e algum papel é quanto lhes basta exibir! E, sem nenhuma ajuda, com material tão escasso que um só homem pode carregar, constroem as suas cabanas! Não conhecem edifícios maiores do que esses, dos que basta um homem para os conseguir erguer!”

Lautréamont não apenas renegou estas papalvices presunçosas, como se entregou ao frenesim oposto, aos prazeres mais dissolutos e que mais estragos provocam nos nossos enredos de ordem afectiva e moral, levando uma ordem de pavor não apenas aos elementos ultrarromânticos, de que se serviu e denunciou, mas estendendo ainda os seus usos sarcásticos à estrutura das epopeias e até aos epítetos homéricos. Aproveitando o balanço da prosopopeia, cada canta abre com um exórdio ao leitor, situando em relação ao que está a ler, mas logo se serve disso para o guiar até certo ponto e logo o deixar desamparado, uma vez que, como notou o poeta e ensaísta argentino Aldo Pellegrini, Os Cantos assumem uma forma labiríntica, e os diálogos oscilam entre a severidade dantesca e a solenidade ridicularizada do folhetim. E ele usa de um tom enfático e vem com hinos, reflexões sobre o ser humano, considerações sobre Deus, precisamente quanto lhe interessa rebaixar tudo isso, impor as comparações mais absurdas, imagens que tudo conspurcam e ofendem. Esse emaranhado, a que adiciona um elemento de terror, depois não se fica por um mero efeito de degradação, mas consegue produzir um humor e uma espécie de melodia únicos pela sucessão sincopada e rápida dos elementos, que alcança o seu grau de mais exaltada floração através dessas imagens bizarras e cativantes, essas insólitas imagens que parecem emergir de impulsos oníricos, sendo-lhe tributado esse estilo de achados poéticos que tiveram uma enorme difusão na poesia moderna, e que os surrealistas levaram à exaustão com analogias que procuravam aproximar realidades imensamente díspares e até opostas. A imagem do “peixe solúvel” de Breton e tantas outras que se seguiram têm como chispa inicial o célebre “encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecção, de uma máquina de costura e de um guarda-chuva”, que passou a funcionar como “símbolo da união dos contrários, da identidade dos opostos”, como explica Pellegrini. E o humor negro tão caro aos surrealistas e que viria a tornar-se o revólver à cabeceira de boa parte dos poetas, como uma aspirina disparada no sentido de despertar em si o espírito de revolta, também alcançou nesta obra uma definição muito particular, mostrando-se tão eficaz no ataque às convenções de toda a ordem. Este humor descarado, perverso, virava do avesso toda a ingenuidade, não tomando mais nada pelo seu valor facial, mas introduzindo sempre um elemento de troça, ironia, que chegava a ser exercido de forma particularmente truculenta em relação a tudo o que pretendia revestir-se de um efeito de solenidade. Isto não descarta a absoluta seriedade do humor, que, na verdade, funciona para convocar o indivíduo ao centro das questões, como se tudo de algum modo lhe dissesse respeito. Por esse motivo, como vinca Pellegrini, ao contrário do que habitualmente se diz, “o humor não é alegre, mas angustiante, e frequentemente é a roupagem perfeita do pessimismo mais profundo”. De resto, é na obra Le Comte de Lautréamont et Dieu, queM. Léon Pierre-Quint define o humor como uma forma de afirmar não tanto “uma revolta absoluta da adolescência e uma revolta interior da idade adulta” como principalmente “uma revolta superior do espírito”, tendo Breton colhido ali esta definição que depois reproduziu no prefácio da sua tão influente Antologia do Humor Negro.

Se, hoje, o humor aparece cada vez mais cooptado pelos enredos da ligeireza, esgrimindo-se argumentos em sua defesa pelo papel essencial que teria ao produzir algum alívio em condições de degradação da vida no geral, e dos direitos sociais em particular, aquela sátira que transforma os bufões em elementos centrais do nosso mediatismo publicitário constante, apregoando os valores liberais que deveriam resgatar-nos do bafo pútrido do fanatismo e das formas de narcisismo contemporâneas, na verdade preserva os mesmos valores morais que agora comparecem todos corroídos, e persiste ainda do lado desse bom-senso conformista. Pelo contrário, em Lautréamont a risada sarcástica é a acção corrosiva do espírito sobre a máscara de um mundo artificial, hipócrita e convencional, que o seu humor procura por todos os meios desintegrar. É negro porque assume a burla que está presente nas normas e princípios que julgamos inabaláveis, expondo todo o sistema de falsos valores que é usado para nos subjugar. Maldoror é uma encarnação desse humor que surge como um frémito e “alcança a incandescência da irrisão” (Calasso), dando provas de uma ferocidade e de uma crueldade que, hoje, está de todo ausente desse riso cada vez mais nervoso de seres que apenas sentem o espírito como um formigueiro nessa região inteiramente impotente. De todos os valores – afirma Breton –, o humor revela uma ascensão constante. É, sem sombra de dúvida, a característica mais específica da sensibilidade moderna. Alimenta-se de todas as formas do arbitrário e do absurdo, e abeira-se do delírio, precipitando-nos num mar agitado que deve libertar os nossos impulsos. Assim, cabe aos espíritos insubmissos desenvolver a monstruosidade a partir do interior da ordem, levar as coisas aos extremos, produzir um vasto mal-estar, ridicularizando todas as regras. E, como disse León Bloy, que foi de todos o primeiro leitor à altura de Lautréamont, aquele que fez solitariamente a descoberta desta obra e se deu conta da sua imensa força destruidora: “É lava líquida. É algo insensato, negro, devorador.” Uma obra escrita por um jovem que terá experimentado uma solidão quase total, capaz de se expandir infinitamente. Pois se não sabemos quase nada sobre o fim que o levou, por mais lacunares que sejam as biografias de Lautréamont, “ao lê-las”, como refere Julien Gracq, “reforça-se a convicção de que, neste ser morto tão jovem, um acontecimento — a sua estada forçada no colégio — deixou uma marca indelével, e que aquilo a que se pode bem chamar a tragédia do internato foi vivida por ele em condições particulares de acuidade e angústia. As referências directas ao ambiente e aos objectos de culto escolares abundam n’Os Cantos de Maldoror (as ‘matemáticas severas’ — ‘o aluno que olha obliquamente para aquele que nasceu para o oprimir!’ — as invocações a Dazet, seu camarada de liceu, que figuravam na edição original e que uma significativa vontade de camuflagem levou Lautréamont a suprimir mais tarde) – trata-se aí, a meu ver, de uma influência incontestável na formação do seu génio, e cuja obsessão está longe de lhe ser particular. Tanto mais que esta deve ter sido decuplicada em Lautréamont por essa aura de abandono que nos colégios envolve os internos vindos do estrangeiro ou das colónias, aqueles sobre quem pesa a maldição dos domingos sem alegria e, pior ainda, das férias passadas no liceu.” Assim se explica aquele seu “nojo nato e principesco da ordem razoável” e que é, segundo este ensaísta, apanágio da infância eternamente anárquica. Lautréamont é, por isso, a criança criminosa que nasce de cada vez que a realidade prova ser uma burla e pode morrer depois de exprimir esse ódio absoluto por ter vindo a um mundo onde, de verdade, ninguém consegue viver.

Jornal Sol

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