Líbia. O marechal aliado de Putin que é uma ameaça para a UE

Um Estado com dois governos, frágil e instável. Após a queda e a morte de Muammar Gaddafi, a Líbia enfrentou divisões internas que culminaram numa sangrenta guerra civil. Depois do cessar-fogo assinado em 2020, o país do Norte de África tentou organizar eleições para assegurar a pacificação interna. Nunca aconteceram. A Líbia continua profundamente dividida, num Estado considerado por muitos analistas falhado. Mas há um país que olha para isso como uma oportunidade valiosa para exercer a sua influência: a Rússia.
Depois da queda do líder sírio Bashar al-Assad em dezembro de 2024, Moscovo perdeu um importante aliado no Médio Oriente. Na Síria, a Rússia controla a base naval Tartus e a aérea Hmeimim, o que lhe providencia uma forte presença no Mar Mediterrâneo. Ainda que o novo regime de Damasco ainda não tenha acabado oficialmente com a cooperação com o Kremlin, a qualquer momento isso pode acontecer e há pressões do Ocidente para que tal se concretize. O regime de Vladimir Putin necessitava, assim, de encontrar uma nova aliança na região — e vê agora um dos governos da Líbia como um parceiro confiável.
Neste momento, a Líbia possui dois governos em função. Um deles, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela maioria da comunidade internacional, controla a parte oeste do país, incluindo a capital, Trípoli. Liderado pelo primeiro-ministro Abdul Hamid Dbeibeh, o Governo de Unidade Nacional (GUN) tem legitimidade e um importante aliado regional: a Turquia. Em menor medida, a União Europeia (UE) e os Estados Unidos da América (EUA) igualmente o apoiam.

▲ Primeiro-ministrio Abdul Hamid Dbeibeh com um dos seus maiores aliados: o da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan
Anadolu via Getty Images
O segundo governo em funções controla o leste da Líbia, tendo como cidade central Benghazi. Este executivo, que nem é reconhecido pela ONU nem pela maioria dos países, é controlado principalmente por um grupo de milícias armadas — o Exército Nacional Líbio — sob o controlo férreo do marechal Khalifa Hafter. Mesmo sem apoio internacional, o militar controla vastas áreas de território líbio. O principal suporte geopolítico vem do vizinho Egito e até de países árabes, como os Emirados Árabes Unidos. Mas o militar também recebe apoio da Rússia.
O marechal Khalifa Hafter não esconde a relação de proximidade com Moscovo. Esteve em maio deste ano na capital russa com Vladimir Putin e procurou “fortalecer a cooperação militar”, cimentando um importante apoio. Por sua vez, por conta das frias relações que mantém o atual regime da Síria, a Rússia procura estabelecer um aliado com acesso ao Mar Mediterrâneo. O leste da Líbia é uma localização ideal para isso.
Mais: com a aliança com o marechal líbio, a Rússia ganha uma oportunidade para desestabilizar a União Europeia (UE). O leste da Líbia está a menos de 300 quilómetros das ilhas de Gavdos e Creta, que pertencem à Grécia. Como é que Moscovo pode prejudicar o bloco comunitário? Instrumentalizando migrantes desesperados por sair de um Estado falhado. Aliás, nos últimos dias, as autoridades dão conta de um aumento do número de pessoas que estão a chegar às ilhas gregas.

▲ Migrantes líbios na chegada à Grécia
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Ouvidos pelo Observador, três especialistas não têm dúvidas de que esta aliança pode dar frutos. “A parceria entre a Rússia e Hafter é construída com base no desespero e em oportunidades mútuas”, diz Anas El Gomati, membro do think tank líbio Sadeq Institute. Esta relação deverá, segundo o analista, “aprofundar-se” nos próximos tempos, aumentando as bases militares russas no leste da Líbia e também os perigos para a UE.
A 9 de maio de 2025, um dia importante para o regime de Vladimir Putin que se celebra a derrota das tropas nazis na Segunda Guerra Mundial e que ganhou um novo simbolismo após a invasão da Ucrânia, Khalifa Hafter esteve a assistir, juntamente a duas dezenas de líderes estrangeiros, à parada militar organizada pelo Kremlin na Praça Vermelha. É uma prova de que, para Moscovo, o intermediário na Líbia é aquele marechal e não o primeiro-ministro Abdul Hamid Dbeibeh.
A ajuda ao marechal por parte de Moscovo não é de agora. Ao Observador, Tarek Megerisi, membro do think tank European Council on Foreign Relations, recorda que a Rússia tem vindo a apoiar o exército de Khalifa Hafter desde 2020. “Desde que o Exército foi desmembrado após o falhanço do cerco de Trípoli em 2020, a Rússia aproveitou-se dessa oportunidade para espalhar a sua influência nos territórios que o marechal costumava controlar. Em troca, a Rússia ajudou a reconstituir o Exército”, lembra o especialista.

▲ Khalifa Hafter, o marechal que controla o leste da Líbia
YANNIS KOLESIDIS/EPA
“Hoje em dia, os russos continuam a explorar a dependência que criaram em Hafter”, prossegue Tarek Megerisi. A Rússia oferece “proteção, apoio militar e diplomático” ao exército controlado pelo marechal, que lhe permite manter o controlo de vários territórios no leste do território líbio e prosseguir os combates contra o governo em Trípoli. Em troca, o militar transformou a Líbia numa “plataforma para todas as operações em África” por parte de Moscovo.
Tarek Megerisi frisa que esta relação é “desigual”. É claramente a Rússia que tem o maior poder: “Não são parceiros igualitários nesta relação”. No leste da Líbia, a Rússia instalou bases militares, navais e aproveitou-se dos recursos naturais da região, em particular as reservas de petróleo. Moscovo enviou sobretudo mercenários da milícia Wagner e do sucedâneo grupo Corpo Africano para a região, para estabelecer o controlo russo.
O fim do regime de Bashar al-Assad na Síria incentivou também que a Rússia intensificasse a sua presença militar na Líbia e fortalecesse os laços com o marechal Khalifa Hafter. Segundo Anas El Gomati, esta parceria ainda é estrategicamente mais engenhosa do que a com Bashar al-Assad. “A Rússia ganha acesso às infraestruturas energéticas da Líbia e projeção na região do Mediterrâneo, assim como profundidade estratégica no Sahel e na Europa do Sul.”
"A Rússia ganha acesso às infraestruturas energéticas da Líbia e projeção na região do Mediterrâneo, assim como profundidade estratégica no Sahel e na Europa do Sul."
Anas El Gomati, membro do think tank líbio Sadeq Institute
A proximidade geográfica da Líbia a países como a Grécia, Itália ou Malta pode revelar-se bastante proveitosa para a Rússia para ajudar a desestabilizar países da União Europeia. Moscovo tem acordos com o marechal Khalifa Hafter que permitem o uso de portos no leste da Líbia. Esta presença russa levanta também preocupações quanto à possibilidade de realização de operações de vigilância no flanco sul da NATO.
Em termos geopolíticos, o governo de Khalifa Hafter revela-se um excelente aliado para a Rússia. A liderança do Exército Nacional Líbio mantém excelentes relações com o Egito e com os Emirados Árabes Unidos. O Presidente egípcio, Abdul Fatah Khalil Al-Sisi, apoia um marechal que deseja impor um regime idêntico ao seu — um regime autoritário, com forte presença militar que combate as forças islamistas radicais —, ao passo que a coroa emirática tem interesses económicos no leste da Líbia.
“Para a Rússia, Hafter oferece o que a Síria não oferecia: uma porta de entrada em África que não colapsa quando um ditador cai. Os parceiros da Líbia são aliados importantes dos Estados Unidos — como os Emirados Árabes Unidos ou o Egito —, que vão apoiar a Líbia independentemente da retórica ocidental sobre a influência russa”, aclara o membro do think tank líbio Sadeq Institute. De acordo com Anas El Gomati, Moscovo tem um parceiro que sustenta e que também é “apoiado por parceiros regionais dos Estados Unidos”.

▲ Marechal oferece a Putin uma "porta de entrada" em África
ALI HAIDER/EPA
Já para o marechal Hafter, o apoio russo dá “legitimidade internacional” ao seu “autoritarismo” militar. “Os russos dão apoio a algo que o Ocidente nunca defenderia: poder sem responsabilização. A assistência russa vem sem eleições, sem garantias do cumprimento de Direitos Humanos ou a existência de instituições democráticas”, prossegue Anas El Gomati. A União Europeia, em contrapartida, costuma exigir mais aos seus aliados.
O mesmo especialista não tem dúvidas que o relacionamento vai apenas melhorar no futuro. Depois da invasão da Ucrânia e das sanções impostas por países do Ocidente, a Rússia precisa de “parcerias africanas confiáveis” e de apoios em todas as geografias. “Em relação a Hafter, o marechal requer apoio externo para tentar controlar o oeste da Líbia, que é mais populoso”, enfatiza Anas El Gomati.
Ainda assim, este relacionamento pode deteriorar-se. Existem sinais de que há crescentes tensões entre o Exército Nacional Líbio liderado pelo marechal e os Corpos Africanos. Em termos geopolíticos, a grande prioridade de Moscovo continua a ser a guerra na Ucrânia. Em consequência, a Rússia, através do Corpo Africano, não tem conseguido honrar muitos dos seus compromissos com Khalifa Hafter.
Os militares em Trípoli estão atentos a uma possível falta de apoio russo. Por conta de o seu principal aliado estar mais concentrado na Ucrânia, o marechal Khalifa Hafter e os seus aliados têm tentado aumentar a sua rede de influência. Nos últimos meses, tem-se encontrado com dirigentes bielorrussos e até turcos, mesmo que a Turquia seja o principal suporte do governo reconhecido pela ONU.
Mísseis apontados para a Europa? As bases aéreas e navais russas na LíbiaQuando o novo regime sírio assumiu o poder e Bashar al-Assad foi para Moscovo, começaram a notar-se as primeiras movimentações. Navios e aeronaves saíram da Síria rumo à Líbia. O primeiro-ministro do Governo de Unidade Nacional fez soar os alarmes logo no final de dezembro. “Temos preocupações que conflitos internacionais se estendam à Líbia. Ninguém quer um poder externo a impor a sua hegemonia e autoridade num país e num povo”, avisou Abdul Hamid Dbeibeh.

▲ Queda de Bashar al-Assad na Síria motivou que Putin intensificasse relações com o marechal Khalifa Hafter
SPUTNIK/AFP via Getty Images
Desde essa altura, a Rússia tem intensificado a presença militar. Inicialmente, no final de dezembro, os russos usaram (e remodelaram) a base aérea de Maaten al-Sarra, localizada no meio do deserto do Saara, perto da fronteira entre a Líbia e o Chade. E isso já demonstrava que a Rússia estava a “reposicionar as suas peças de xadrez em África” depois da queda de Bashar al-Assad.
Em declarações à imprensa internacional, Anas El Gomati explicou que a Rússia, ao mesmo tempo que “perdia as bases aéreas sírias”, estava a incrementar a presença em Maaten al-Sarra, criando uma “nova rede de influência que ia desde o Mediterrâneo até África”. A partir daquela base no meio do deserto, Moscovo conseguia realizar voos para entregar armas a outros aliados africanos ou mercenários russos em países, como o Burquina-Faso, o Chade, o Mali ou o Sudão.
Mais recentemente, no final de junho, uma investigação feita pela rádio francesa RFI, com base em imagens de satélite, revelou que a Rússia está também a utilizar a base aérea de Al-Khadim, no nordeste da Líbia. Naquela infraestrutura, Moscovo tem armazenado equipamentos militares oriundos da Síria — que são depois vendidos a outros países africanos. Seria uma espécie de hub russo em África.
????????| The Maaten al-Sarra base in Lybia continues to expand. Since March, the infraestructure development alongside the main runway has been significant. pic.twitter.com/AdFKtcTgZS
— Iván (@FpAnalisis) June 14, 2025
Militarmente, a italiana Agenza Nova noticiou que a Rússia estaria mesmo a ponderar instalar sistemas de mísseis noutra base aérea em Sebha, no meio da Líbia. Moscovo queria instalar mísseis apontados diretamente para a Europa. Contudo, essa hipótese causa dúvidas entre muitos analistas ouvidos pelo Politico, que apontam mais para um uso logístico destas infraestruturas.
Em termos estratégicos para a Europa, o que mais preocupa é, no entanto, a base naval de Tobruk, uma cidade localizada no leste da Líbia, a cerca de 175 quilómetros do Egito. No final de dezembro de 2024, o ministro da Defesa italiano, Guido Crosetto, já tinha deixado o aviso de que “Moscovo estava a transferir recursos da base naval síria de Tartus para a Líbia”. “Isto não é uma coisa boa. Os navios e submarinos russos no Mediterrâneo são sempre uma preocupação, ainda mais se estão a mil quilómetros de distância e a dois passos de nós.”
A Rússia tem mostrado interesse em manter ou mesmo aumentar a presença militar no Mar Mediterrâneo. Em declarações ao Observador, Basil Germond, professor de Segurança Internacional na Universidade de Lancaster, analisa que com “a perda do controlo da base naval de Tartus na Síria, a presença no Mediterrâneo e por extensão no Médio Oriente e África fica prejudicada”.

▲ Tobruk, na Líbia
AFP via Getty Images
“Logisticamente, a perda de Tartus, combinada com o encerramento dos estreitos turcos Bósforo e Dardanelos aos seus navios desde o início da guerra da Ucrânia, prejudicou profundamente a habilidade de Moscovo em realizar missões navais e apoiar operações em terra” na região do Mediterrâneo, explica Basil Germond. É neste contexto que entra a base naval de Tobruk: “É uma forma de a Rússia assegurar o acesso às instalações navais para apoiar os meios navais que estão no Mediterrâneo e as forças destacadas em África”.
Esta base militar no leste da Líbia poderá ser, por isso, um ponto nevrálgico de uma nova estratégia securitária da Rússia no Mar Mediterrâneo, que preocupa as capitais europeias. Ainda assim, Basil Germond ressalva que Tobruk “não oferece o mesmo grau de estabilidade do que Tartus sob o regime de Assad e não tem o mesmo nível de instalações para reparar e manter navios”.
Rússia continuará a instrumentalizar migrantes da Líbia — e direcioná-los para a EuropaNo Mar Mediterrâneo, a estratégia russa consiste igualmente em semear o caos perto da União Europeia e da NATO. Ao controlar totalmente a base naval de Tobruk (até ao momento, do que se sabe, apenas tem uma parceria com Khalifa Hafter), isso representará um perigo para as bases sul-europeias, em particular as gregas e italianas.

▲ Bielorrússia e Rússia já instrumentalizaram imigrantes entre 2021-2022 perto da fronteira da União Europeia e bielorrussa
LEONID SCHEGLOV / BELTA HANDOUT HANDOUT/EPA
Por agora, os alertas são apenas na questão migratória. No passado, Moscovo também já usou as mesmas táticas. “Já vimos que a emigração da Líbia foi usada como arma contra a Europa. A Rússia também ajudou a que os migrantes da Síria chegassem à Europa através da Bielorrússia”, recordou Tarek Megerisi, acrescentando outras operações híbridas russas: “A Rússia já ajudou a minar a Europa através da Líbia, contribuindo para a instabilidade líbia e utilizando a Líbia como um veículo para conduzir operações militares e de desinformação destinadas a reduzir a influência da Europa na África Subsaariana”.
Devido a este modus operandi que foi usado no passado, Tarek Megerisi não tem dúvidas: “É totalmente lógico que a instrumentalização de migrantes da Líbia continuará a piorar à medida que as relações entre a Rússia e a Europa pioram e a Ucrânia se torna num pântano russo”.
Tal como aconteceu na questão geopolítica, a Líbia ainda oferece mais oportunidades para a Rússia do que a Síria. “A Rússia já demonstrou que usa as migrações como uma arma através da Bielorrússia”, diz Anas El Gomati, lembrando a chegada de milhares de migrantes à fronteira entre a Bielorrússia, Polónia e os países Bálticos entre 2021 e 2022.
"A Rússia já ajudou a minar a Europa através da Líbia, contribuindo para a instabilidade líbia e utilizando a Líbia como um veículo para conduzir operações militares e de desinformação destinadas a reduzir a influência da Europa na África Subsariana."
Tarek Megerisi, membro do think tank European Council on Foreign Relations
“A Líbia tem um potencial maior por conta da geografia [por estar mais perto da Europa] e do controlo territorial de Hafter. Através da costa do leste da Líbia e das regiões fronteiriças do sul, a Rússia pode manipular vagas migratórias, mantendo abertura suficiente para negar estar na origem desses processos”, expõe Anas El Gomati, acrescentando que a Rússia pode usar duas táticas: “Facilitar a imigração para pressionar a Europa, ou posicionar Hafter como um parceiro da estabilidade”.
Grécia e Itália falam em “situação de emergência”. Atenas já tomou as primeiras medidasGrécia e Itália já falaram sobre o problema na União Europeia. Os dois países, que são dos mais afetados com a intensificação de uma crise migratória oriundas da Líbia, já avisaram os restantes Estados-membros das consequências negativas que pode resultar desta situação. “A Líbia é uma emergência que a Europa deve enfrentar em conjunto”, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Antonio Tajani.
Por sua vez, a Grécia já tomou as primeiras medidas. O governo liderado pelo primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis também destacou que o país vive uma “situação de emergência”, tendo sido necessário adotar “medidas excecionais”. O chefe do executivo decidiu, por isso, “suspender todos os pedidos de asilo de migrantes que chegam a bordo de barcos vindos do Norte de África durante três meses”. “Todos os migrantes que entrem ilegalmente serão presos. A passagem para a Grécia está fechada.”

▲ Kyriakos Mitsotakis, primeiro-ministro da Grécia, já descreveu a situação como "situação de emergência"
ACHILLEAS CHIRAS/EPA
De acordo com a Guarda Costeira grega, já chegaram mais de 10 mil pessoas apenas à ilha de Creta. Desde junho, o número de chegadas aumentou tendo as autoridades locais alertado que as instalações de acolhimento ficaram lotadas. Numa mensagem aos migrantes, o ministro das Migrações grego, Thanos Plevris, pediu que “fiquem onde estão” e avisou-os que não serão bem-vindos em território grego.
Um governante grego confidenciou ao Politico que esta nova legislação grega já suscitou interesse “em vários ministros” que veem nas “medidas excecionais” como uma das mais duras “algumas vez colocadas em prática” num Estado-membro. “Isso já levou a vários pedidos de encontros bilaterais” com o ministro Thanos Plevris, de forma a “entender melhor o novo enquadramento”.
Ao Observador, Anas El Gomati refere que a localização geográfica da Líbia é, efetivamente, um “ponto perfeito de pressão” para a Europa. “Está perto da Europa para criar uma crise, [a situação política] é caótica o suficiente para encobrir o que se passa e o país está dividido para a Rússia poder operar através de proxies“, assinala o mesmo especialista.

▲ Migrantes líbios chegados a Creta
YANNIS KOLESIDIS/EPA
Numa altura em que as opiniões públicas europeias estão sensibilizadas para a questão migratória, Anas El Gomati avisa que os “políticos europeus, desesperados para gerir” esta temática convertem-se em “reféns” de uma dinâmica criada pela Rússia. “É a instrumentalização do desespero humano para ganhos estratégicos — não apenas para emocionar as pessoas, como também para manipular os medos europeus para alcançar certos objetivos políticos.”
Juntamente com o ministro das Migrações da Grécia, de Itália e de Malta, o comissário europeu para os Assuntos Internos e Migração, Magnus Brunner, encontrou-se com o primeiro-ministro do Governo de Unidade Nacional no início de julho. O líder do executivo líbio reconhecido pelas Nações Unidas prometeu que “lançaria uma vasta campanha nacional com o apoio de vários países amigos para combater o tráfico de pessoas”.
Por muito bem intencionadas que possam ser as promessas de Abdul Hamid Dbeibeh, estas não são suficientes para gerir a situação na União Europeia. Acima de tudo, os dirigentes comunitários precisam de falar com o marechal Khalifa Hafter, o aliado de Vladimir Putin. Depois de se encontrarem com o primeiro-ministro reconhecido pela ONU, o comissário e os ministros europeus tentaram ir a Benghazi negociar com o líder do leste da Líbia.

▲ Magnus Brunner, comissário da União Europeia para as Migrações
RONALD WITTEK/EPA
Mas os dirigentes europeus não foram recebidos pelo marechal Khalifa Hafter. Após terem estado em Trípoli com Abdul Hamid Dbeibeh, a delegação europeia foi barrada em Benghazi — e Magnus Brunner até foi considerado “persona non grata”. Segundo os homens próximos do militar que governa o leste da Líbia, os líderes e ministros da União Europeia violaram uma série de “práticas diplomáticas”.
O incidente diplomático foi uma demonstração de força de Khalifa Hafter — o marechal sabe que os dirigentes europeus estão interessados em falar consigo, já que é o único que pode travar uma crise migratória. O militar pretende o reconhecimento do seu governo pela União Europeia e usar a questão migratória como uma moeda de troca. “Foi apenas um estratagema da parte de Hafter para tentar legitimar o seu governo e a face civil da sua ditadura militar”, constatou, à Euronews, Tarek Megerisi.
Tendo em conta que apenas o governo em Trípoli é reconhecido pela ONU, devem os dirigentes europeus falar com Khalifa Hafter, que — aos olhos de muitos — é considerado um líder separatista na Líbia? O dilema não é de fácil resolução: por um lado, a União Europeia quer evitar o agravamento de uma crise migratória; por outro, correm o risco de serem instrumentalizados por um líder que internacionalmente não foi legitimado.
"O facto de a Rússia estar a aumentar a influência na Líbia é preocupante e é por isso que devemos interagir com a Líbia. Há certamente o perigo de a Rússia usar a questão migratória como uma arma contra a Europa. A instrumentalização está a ocorrer."
Magnus Brunner, comissário da União Europeia para as Migrações
Numa entrevista ao Politico, mesmo após ser expulso de Benghazi, Magnus Brunner defendeu que é necessário prosseguir negociações com Khalifa Hafter, confirmando que estão abertos “canais de comunicação a nível técnico que funcionam muito bem”. “O facto de a Rússia estar a aumentar a influência na Líbia é preocupante e é por isso que devemos interagir com a Líbia. Há certamente o perigo de a Rússia usar a questão migratória como uma arma contra a Europa. A instrumentalização está em curso”, argumentou o comissário.
A influência de Vladimir Putin na Líbia não deixa outra escolha à União Europeia se não agir e interagir com Khalifa Hafter, acredita Magnus Brunner, garantindo que a UE já esqueceu o incidente diplomático. “Estamos prontos para conversas a qualquer altura. Na minha visão, é urgentemente necessário”, defendeu o comissário europeu para as Migrações.
A incógnita agora é perceber se Khalifa Hafter deseja falar com os dirigentes europeus. Por um lado, o marechal precisa de legitimidade internacional, de apoio militar já que o seu aliado está concentrado na Ucrânia e de continuar os combates contra o governo de Trípoli, que considera ilegítimo. Por outro, a União Europeia vai encetar com um líder que não tem só uma “cooperação tática” com a Rússia. Como define Anas El Gomati, Moscovo tem uma relação de “codependência estratégica que se alimenta da divisão da Líbia”, um Estado visto por muitos como falhado e em que será muito difícil sarar as divisões internas.
observador