A Suécia e o mito do retrocesso digital

Enquanto espero, em Helsínquia, relativamente perto da Suécia, por mais um voo de regresso a casa, folheio – em formato digital – os jornais portugueses online e as redes sociais. Na última semana, chamou-me a atenção uma entrevista da jornalista Andrea Sanches (Público) a Johan Pehrson, ex-ministro da Educação da Suécia: “Fomos ingénuos”: a Suécia, pioneira na digitalização da educação, está “a voltar ao papel e à caneta”.
O artigo apresenta a Suécia como exemplo do abandono do digital e do regresso ao essencial: “O essencial é ter ordem e calma na sala de aula, é aprender cedo a ler, a escrever, a matemática básica” diz Pehrson. A jornalista argumenta, com base nessa entrevista, que a digitalização da educação no país terá levado ao retrocesso das competências de leitura. Mas será mesmo assim? Os dados oficiais da OCDE – recolhidos pelo PISA desde 2000 (e não desde 1990, como o artigo refere) – mostram exatamente o contrário.
A sociedade sueca, como tantas outras no hemisfério norte, debate intensamente os prós e contras da digitalização, sobretudo no caso das crianças mais pequenas. Não há grandes dúvidas sobre os efeitos nocivos do uso excessivo de ecrãs nos primeiros 1000 dias de vida. Mas e em idade escolar? Teremos nós exemplos mais próximos – por exemplo, na Região Autónoma da Madeira – sobre o impacto da digitalização do ensino? Por que razão havemos de inferir, para Portugal, a partir do que alguns políticos suecos dizem sobre o seu país? Será que por cá nada tem sido feito?
Recordo-me de uma jornalista da CNN Portugal no programa Arena CNN me dizer, a propósito deste tema, que “a Suécia mostra que…” (o mesmo discurso do artigo do Público) e que “a Madeira é apenas uma microregião”. Muito bem: vejamos então os dados da Suécia em leitura.

(o leitor pode obter a figura original e comparar com a média da OCDE aqui)
Em 2000, no primeiro ano do PISA, a Suécia obteve 23 pontos acima da média da OCDE em leitura (493). Depois, começou a regredir e o ponto mais baixo da série PISA foi em 2012: 9 pontos abaixo da média da OCDE. Ora, foi apenas em 2009 que os manuais digitais começaram a ser introduzidos de forma generalizada no sistema de ensino sueco. E, entre 2012 e 2018, como bem ilustra o gráfico da literacia de leitura do PISA, os resultados suecos subiram significativamente. Importa lembrar que os efeitos de mudanças estruturais no sistema educativo só se refletem no PISA um ou dois ciclos depois (3 a 6 anos). Assim, a digitalização generalizada do ensino na Suécia esteve associada, não a uma queda, mas sim a uma recuperação da literacia de leitura.
Se os alunos do 1.º ciclo, que na Suécia se inicia aos 6 anos, tivessem sido prejudicados pela introdução digital em 2009, então em 2018 – nove anos depois, aos 15 anos – os resultados deveriam ter sido os piores de sempre. Não foram. Pelo contrário, regressaram a níveis da primeira década do século XXI ficando acima da média da OCDE.
E depois de 2018? Surge o efeito Covid. Em Portugal, um ex-ministro chegou a dizer que “o PISA 2022 foi o PISA da pandemia”. Mas convém lembrar: a Suécia praticamente não teve confinamentos. As escolas, do primeiro ao terceiro ciclo, permaneceram abertas durante a pandemia.
Entre 2022 e 2025, perante crescentes preocupações (mas sem evidência clara nos dados da OCDE/PISA) sobre os resultados de aprendizagem, o governo sueco lançou um programa nacional para reintroduzir manuais escolares em papel e regressar ao básico: ler, escrever, fazer contas bem e ter disciplina na sala de aula (será que se esqueceram da “Cidadania e Desenvolvimento”?). Foram investidos 104 milhões de euros para garantir manuais impressos a todos os alunos – em complemento, não em substituição, das ferramentas digitais.
Nenhuma sociedade moderna se pode dar ao luxo de uma “Amishização” forçada. A literacia da leitura (e matemática, e ciências) é essencial, mas não é o retrocesso tecnológico que a garante.
A experiência da Suécia – e a forma como parece ser retratada pelo jornalismo português – mostra que o problema da digitalização do ensino vs. literacia é bem mais profundo do que “papel ou ecrãs”.
observador