Pesquisas revelam como a poluição pode desencadear mudanças prejudiciais no cérebro que levam à neurodegeneração.

A poluição do ar adoece e mata. De muitas maneiras. Descobriu-se que ela desencadeia doenças cardiovasculares, infecções respiratórias e tumores, como câncer de pulmão . E é responsável por 4,2 milhões de mortes prematuras em todo o mundo a cada ano. Não há dúvidas sobre seu potencial nocivo, mas a ciência está tentando desvendar os detalhes com cada vez mais precisão para identificar as ligações exatas entre a poluição e diversas doenças. Uma nova pesquisa, publicada nesta quinta-feira na revista Science , focou na conexão entre a poluição do ar e o risco de desenvolver demência, um grupo de doenças neurodegenerativas tradicionalmente associadas ao envelhecimento e caracterizadas pela destruição da memória e da autonomia individual.
Especificamente, os cientistas da Universidade Johns Hopkins (EUA) responsáveis pelo estudo se concentraram na demência por corpos de Lewy, um distúrbio neurodegenerativo caracterizado pelo acúmulo anormal de alfa-sinucleína, uma proteína no cérebro. Esses depósitos nocivos (corpos de Lewy), característicos desse tipo de demência e também da doença de Parkinson, são responsáveis por problemas motores e perda de memória. De acordo com a nova pesquisa, essa proteína também pode ser a chave para explicar como a exposição prolongada à poluição do ar aumenta o risco de desenvolver esse tipo de demência. A pesquisa fornece suporte científico para o potencial dos poluentes atmosféricos de desencadear doenças e sugere que a alfa-sinucleína é um mediador fundamental que liga o estresse ambiental aos danos cerebrais.
Xiaobo Mao, pesquisador do Departamento de Neurologia da Universidade Johns Hopkins e autor do estudo, diz que sua intenção era mergulhar em uma grande lacuna no conhecimento, uma “caixa preta” que impedia entender exatamente como a poluição danifica o cérebro: uma associação entre poluição e o risco de desenvolver demência já havia sido demonstrada , mas “os mecanismos moleculares específicos não estavam claros”.
Eles se concentraram especificamente na demência por corpos de Lewy devido ao seu impacto na saúde pública — é a segunda demência neurodegenerativa mais comum, atrás apenas do Alzheimer — e porque sua ligação com a poluição era "um ponto cego para a ciência", diz ele, quase desconhecido. "Vimos uma necessidade urgente de investigar se essa exposição ambiental comum poderia ser um fator de risco para essa doença devastadora e disseminada", explica ele em uma resposta por e-mail.
A primeira coisa que os cientistas fizeram foi se aprofundar em pesquisas epidemiológicas para confirmar essa associação, já sugerida na literatura científica anterior. Para isso, utilizaram dados de 56 milhões de pacientes americanos hospitalizados por doenças neurodegenerativas entre 2000 e 2014. Concentraram-se naqueles com doenças por corpos de Lewy e também calcularam sua exposição a PM 2,5 — um poluente atmosférico em suspensão formado pela combustão de veículos, em fábricas ou pela queima de materiais. Ao cruzar os dados, os cientistas descobriram que, à medida que a exposição a esses tipos de toxinas ambientais aumentava, também aumentava o risco de hospitalização por essas doenças neurodegenerativas.
Em seguida, em experimentos com camundongos, eles também confirmaram que roedores normais expostos a esses poluentes de fato apresentavam acúmulos de alfa-sinucleína e acabavam sofrendo atrofia cerebral, morte neuronal e declínio cognitivo — todas características da demência. Em contraste, quando camundongos geneticamente modificados para não produzir alfa-sinucleína foram expostos aos mesmos poluentes, não foram observadas alterações significativas no cérebro: nem atrofia cerebral nem declínio cognitivo. "A poluição ainda estava presente, mas sem sua principal proteína-alvo, ela não poderia causar esse tipo específico de neurodegeneração", acrescenta o pesquisador.
Esses cientistas levantam a hipótese de que toxinas ambientais, como partículas finas de PM 2,5, podem desencadear um acúmulo anormal de alfa-sinucleína, o que pode espalhar danos por todo o cérebro.
E corroboraram isso em outro experimento com camundongos geneticamente modificados para produzir a versão humana da proteína: após cinco meses de exposição aos poluentes, os autores detectaram acúmulos de alfa-sinucleína e declínio cognitivo. Mas esses depósitos nocivos eram diferentes daqueles que se desenvolvem com o envelhecimento: a exposição a partículas finas gerou uma cepa diferente de alfa-sinucleína.
Uma cepa tóxica, distinta e muito agressivaDescobrimos que o PM2,5 atua como um catalisador, fazendo com que a proteína alfa-sinucleína se dobre incorretamente, formando uma cepa tóxica distinta e altamente agressiva. Podemos pensar assim: o PM2,5 não apenas danifica o cérebro diretamente, mas também corrompe uma proteína nativa, transformando-a em uma superdisseminadora de doenças, mais resistente à eliminação celular e mais tóxica para os neurônios do que as formas de alfa-sinucleína que se agregam por si só. Confirmamos esse efeito com amostras de PM2,5 dos EUA, China e Europa”, explica Mao.
O cientista afirma que a cepa tóxica de alfa-sinucleína identificada em seus experimentos com camundongos "compartilha propriedades bioquímicas e patológicas importantes com cepas de alfa-sinucleína extraídas do líquido cefalorraquidiano de pacientes humanos com demência por corpos de Lewy".
Pascual Sánchez, secretário do Grupo de Estudos de Comportamento e Demência da Sociedade Espanhola de Neurologia, acolhe com satisfação os resultados desta pesquisa, da qual não participou, pois afirma que acrescenta "mais evidências de que a poluição pode influenciar a demência", mas recomenda cautela na interpretação dos resultados: só porque foi encontrada uma via molecular que ajuda a explicar essa correlação não significa que todas as pessoas expostas à poluição atmosférica desenvolverão demência por corpos de Lewy. "É um fator de risco, mas a associação é relativamente leve. Não é como fumar e o risco de câncer, que é muito maior. Mas, embora o risco absoluto seja pequeno, a ligação é clara, e este estudo é um alerta", alerta o neurologista, que também é diretor da Fundação CIEN.
Grandes incógnitas a serem resolvidasNesse sentido, o próprio Mao admite que o que ainda precisa ser descoberto é precisamente "como os poluentes interagem com os fatores de risco genéticos individuais, visto que nem todas as pessoas expostas à poluição desenvolvem demência por corpos de Lewy". Eles também não sabem quais componentes específicos do PM 2,5 — essas partículas são compostas por diversos produtos químicos — são os mais nocivos. Ele lembra que sua pesquisa se concentrou na relação entre poluição e a necessidade de hospitalização por demência por corpos de Lewy, mas "mais pesquisas são necessárias para confirmar o papel da poluição no início da doença".
No geral, a descoberta reforça as evidências sobre o impacto da poluição na saúde e abre novos cenários preventivos e terapêuticos, prevê Mao. "Reduzir a poluição do ar é uma estratégia crucial para proteger a saúde do cérebro. Terapias futuras também podem ser projetadas para prevenir a interação de poluentes atmosféricos com a alfa-sinucleína ou para neutralizar especificamente essa cepa altamente tóxica após sua formação."
Diana Esteller, neurologista do Hospital Clínic de Barcelona, enfatiza ainda o impacto deste estudo na prevenção: "Qualquer coisa que se possa fazer para eliminar este fator de risco será positiva". E, embora admita que também possa abrir caminho para novas pesquisas terapêuticas, ressalta que o desenvolvimento farmacológico para esta doença específica é "limitado". "Dada a sua frequência, parece que a demência por corpos de Lewy tem sido um pouco negligenciada", concorda.
Mao, por sua vez, assume que a via molecular descoberta em sua pesquisa para explicar essa associação entre poluição e demência é apenas uma entre muitas. "A poluição do ar é uma combinação complexa que ataca o corpo em múltiplas frentes. Nosso estudo adicionou uma nova peça crucial ao quebra-cabeça, mas o quadro geral provavelmente é uma combinação de vários mecanismos prejudiciais", sugere.
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