As ondas de calor matam mais do que os incêndios

Salvo casos absolutamente excecionais, as mortes provocadas pelas ondas de calor nunca são noticiadas, com a importância que mereciam. Limitam-se a ser referidas como mais um algarismo, a somar a um número que, de vez em quando, é atirado em jeito de balanço. Ao contrário do que acontece com os incêndios florestais – em que se discutem, ao minuto, as decisões tomadas pelos comandos das forças de combate, se esgrimem argumentos sobre a ausência de meios e até se montam grandes polémicas sobre a responsabilidade dos políticos de turno –, em relação aos efeitos nefastos das ondas de calor o tema costuma ser visto como uma espécie de fatalidade bondosa, quase um convite para ir à praia. E, nunca, mas mesmo nunca, se pede responsabilidades ao poder político quando, meses mais tarde, se descobre que morreram milhares de pessoas por causa de dias sucessivos de calor extremo.
A verdade, no entanto, é que o calor mata muito mais do que os incêndios. E à medida que o planeta vai aquecendo, mais essa evidência se torna eloquente, ao ponto de já ser hoje consensual que o calor extremo é a causa direta para cerca de meio milhão de mortes anualmente no mundo, e muitos outros milhões indiretamente. Em Portugal, embora ainda sem números completamente fechados e devidamente analisados, tem-se percebido o excesso de mortes, face à média habitual, sempre que atravessamos ondas de calor – que são cada vez mais frequentes e intensas.
Nada disto devia ser novidade. Diversos estudos têm alertado para o aumento das mortes por causa do calor extremo. A Europa, em particular, pelas características da população e do clima, é um dos continentes onde a ameaça é maior, devido às elevadas temperaturas que se registam nos grandes centros urbanos. Os cientistas já avisam, aliás, que o excesso de mortes por calor extremo na Europa vai ser superior ao da diminuição do número de vítimas por frio extremo, que irá acontecer, com um clima mais ameno. As ondas de calor registadas na Europa em 2003 foram associadas a mais de 70 000 mortes. E, cerca de duas décadas mais tarde, no verão de 2022, já depois de terem sido adotadas medidas de adaptação em muitas cidades, os recordes de calor foram responsáveis por cerca de 60 000 mortes.
Um estudo recente também identificou uma relação entre as ondas de calor e o envelhecimento. Com uma comparação que devia fazer-nos pensar, quando discutimos como o estilo de vida tem um impacto direto na saúde: segundo os cientistas, estar exposto a sucessivas ondas de calor faz aumentar a nossa idade biológica, de uma forma comparável ao tabagismo ou ao consumo regular de álcool. O estudo de longo prazo, publicado na Nature Climate Change, feito num universo de 24 922 pessoas, em Taiwan, foi também claro sobre aquilo que podemos esperar para o futuro: quanto mais formos expostos a ondas de calor, mais os nossos órgãos vão envelhecer – mesmo que nós não o percebamos.
O calor extremo é, por aquilo que temos visto, um assassino duplamente silencioso: primeiro porque mata, sem que se perceba imediatamente a sua responsabilidade; e, segundo, porque não convoca o mesmo grau de debate e de exigência de medidas que acontece, por exemplo, com os incêndios.
O problema é que o calor já é e vai ser um problema cada vez maior num país como o nosso. Combater o calor extremo vai exigir medidas muito vastas e transversais, em especial para proteger uma população crescentemente envelhecida e mais vulnerável – tantas vezes atirada para lares de idosos sem condições básicas, quanto mais para fazer frente às altas temperaturas.
Em ano de eleições autárquicas, nomeadamente nos centros urbanos mais populosos, o programa de combate às ondas de calor devia estar no centro dos debates. Até porque é uma emergência que tem implicações diretas no ordenamento do território, na necessidade de criação de espaços verdes, na organização do trabalho, nos horários laborais e escolares.
Quando se propõem pactos de regime para enfrentar o flagelo dos incêndios, como fez o Governo recentemente, não podemos limitar a discussão apenas à madeira que arde. É preciso olhar para o que está na origem de tudo e acelerar as medidas que combatam o aquecimento global. O calor mata mesmo – muito mais do que os incêndios.
Visao