O Algarve no outro lado do espelho

Passados 51 anos do 25 de Abril de 1974 e 50 do jornal barlavento, mais do que questionar a importância desse momento histórico que nos libertou da ditadura, importa perguntar, o mais objetivamente possível, o que nos deram estes anos de democracia, qual a sua incidência na vida da região.
Tivemos conquistas sociais, saneamento básico (água, esgotos, …), estradas, direitos, garantias e liberdades, entre as quais a liberdade de expressão, da qual este jornal é um fruto da época. Contudo, continuamos a ser dos povos mais insatisfeitos e pessimistas da Europa.
Da educação à saúde, do ordenamento do território à habitação, da insatisfação de quem não tem casa ou tendo um teto passa muito frio no inverno, da tristeza dos atentados urbanos que esvaziaram a vida cívica e comercial, de cidades como Portimão e Faro, para a remeter para centros comerciais concentracionários de consumo. Do desordenamento do território aos baixos salários, temos um país por construir.
No Algarve, o Turismo, apesar da aposta na melhoria de alguns serviços, qualificação do alojamento, melhoramentos de apoios e acessos de praia, dos bonitos passadiços à beira-mar e da diversificação da oferta (turismo de natureza, turismo cultural), corre o sério risco de rápida degradação por se tornar excessivo e massivo sem a correspondente eficácia de serviços públicos.
A pressão turística tem efeitos colaterais no consumo de água, na produção de resíduos, no estacionamento, no número de pessoas nas ruas, no ruído; num futuro próximo pode mesmo provocar a disrupção dos serviços necessários no dia a dia, como já acontece, veja-se a degradante imagem do lixo acumulado fora dos contentores.
Continuamos sem ter uma rede eficaz de transportes públicos que nos sirva, a nós e quem nos visita. Como entender que, passado meio século, não haja um metro de superfície a ligar a capital, o aeroporto e o campus universitário das Gambelas?!…
Uma maré social, em crescendo, imenso mar de fora espraiado no quotidiano da vida algarvia, qual caldeirada de gentes que arribam como gaivotas, uns desamparados do mundo em busca das migalhas do boom turístico, outros confortáveis no seu poder de compra, instalando o sofá de vida à beira mar, colocam novos desafios a um universo autárquico que o mais das vezes vive enredado numa visão segmentária, sem perspectivar a região no seu todo.
Como conviver e harmonizar a convivência de quem vive e habita, por exemplo, o esplendor de apartamentos de luxo como o Del Mar, em Olhão e o Bayline, em Armação de Pêra, com os pardieiros onde se amontoam imigrantes… Esplendor e miséria.
Em toda a região, há um mundo cada vez mais plural e intercultural, no qual se cruzam diferentes destinos: do jovem paquistanês ou da mulher marroquina, migrantes da necessidade, quase sempre mal pagos e explorados, aos franceses, holandeses e tantos outros que fogem do medo e da confusão e investem numa casa, no Portugal tranquilo, barato e simpático, olhando para nós: algarvios naturais que somos diferentes do que éramos.
É urgente repensar a atividade turística, ter uma estratégia e coragem política para enfrentar a nova realidade. De um turismo massificado e oportunista a exigir medidas de contenção. Por exemplo, como é possível licenciar piscinas em açoteias/rooftops, agora tão em voga?!…
Questões essenciais como política ambiental, gestão de recursos hídricos, harmonização da vida urbana e da paisagem rural, continuam relegadas para segundo plano por quem governa e decide. Assistimos ao crescente desaparecimento no litoral (e até no barrocal) da paisagem de sequeiro de características mediterrânicas, a qual é cada vez mais diminuta no meio de plantações de frutos tropicais e novas urbanizações.
Tavira, comunidade e território, pertencente à rede da Dieta Mediterrânica do Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO, pode vir a perder a beleza identitária da sua paisagem rural com a contínua substituição de amendoeiras, figueiras e oliveiras por abacateiros e estufas de culturas intensivas.
Podemos até incluir o abacate como ingrediente inovador numa salada de base tradicional, mas seria triste ver as árvores tradicionais, memória de gerações e fornecedoras de produtos essenciais da dieta mediterrânica como o azeite, perderem predominância nos nossos campos de cultivo.
Pior, com a nova e dispensável lei dos solos, a possibilidade de construir em terrenos rústicos, não só abrirá caminho à ocupação opressiva da paisagem agrícola e de espaços naturais ainda preservados, como irá aprofundar a desigualdade social do habitat humano, em nada resolvendo o grave problema da falta de habitação.
No Algarve, assistimos ao salpicar crescente de um povoamento disperso de casas pré-fabricadas e contentores adaptados, com chapa à volta a vedar o terreno, satisfazendo todo e qualquer anseio individualista abarracado. A par da construção clandestina ou indevidamente autorizada, a especulação imobiliária, na sua insaciável busca de novos terrenos para loteamentos e construção, poderá saciar o mercado com mais oferta de condomínios de luxo e resorts milionários.
Construir, sim. Mas não só em tijolo e cimento. A especulação imobiliária e a avassaladora urbanização da região têm resumido a ideia de empreendedorismo e de desenvolvimento. O tão famigerado crescimento económico muitas vezes não passa de mais uns pilares e patamares. Acrescido de mais uns milhares de turistas.
Construir o quê, para quem? Estamos a construir para as reformas douradas para as quais Portugal é sinónimo de paraíso, como proclama o famoso designer Philippe Starck. Qual paraíso?!…
Para ele, sim, Portugal é o país encantado do criador. Para milhares de portugueses é o trabalho diário de quem dificilmente paga as contas no final do mês, um aumento exponencial do custo de vida com particular incidência no Algarve devido ao turismo, o preço impossível da habitação e da restauração (com preços que nos convidam a ficar em casa e não comer fora).
Somos cada vez mais uma região de reformados do mundo rico. Adorável para velhos estrangeiros, com dinheiro para pagarem o proliferar de clínicas e hospitais privados e até beneficiar do SNS (se souberem movimentar-se).
O turismo de saúde é um dos segmentos em crescimento no Algarve. Que felicidade! Entretanto, uma grávida de Portimão tem de vir dar à luz em Faro.
Enfim, desenha-se um novo cenário humano, uma nova complexidade de relações, olhares, tolerâncias e discriminações, reconhecimentos que confrontam e colocam novos desafios urbanos ao entendimento das diferentes formas de viver, habitar e projetar a região.
Paulo Penisga | Professor
Licenciado em História pela faculdade de letras de Coimbra. Professor de História e Cidadania do ensino básico e secundário. Editor e autor da revista Em Cena (1999-2005). Sócio – gerente da empresa S/Título, Lda., proprietária da galeria/café Zem Arte – Armazéns de Arte (São Brás de Alportel, 2009-2014). Colaborador nos jornais Barlavento e Terra Ruiva.
Foto: Luís Torres
Artigo publicado no âmbito dos 50 anos do jornal barlavento.
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