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Cristiana Bastos e a escravatura branca

Cristiana Bastos e a escravatura branca

Há afirmações e tomadas de posição que só chegam ao nosso conhecimento com grande atraso, mas que ainda assim vale a pena desmontar e confrontar porque aquilo que representam continua bem presente e actuante na nossa sociedade e no nosso meio académico. Vem isto a propósito de um artigo que publiquei no Observador (26 de agosto de 2022) e que se intitula “Escravatura branca”. Nesse artigo lamentei que a gente woke só tivesse olhos acusatórios para a escravatura que fora levada a cabo por europeus e americanos, no contexto da história colonial, ignorando ou desvalorizando a que os negros sofreram às mãos de outros povos e noutros contextos, bem como outras formas brutais de transporte e exploração de pessoas de todas as cores de pele.

Reconheci, porém, que felizmente havia excepções a essa tendência geral e mencionei, a título de exemplo, a antropóloga Cristiana Bastos, investigadora do prestigiado ICS, que escrevera um artigo no Público sobre os malefícios da economia de plantação no qual sugerira um paralelo entre as actuais condições dos imigrantes, em Odemira e outros pontos do país, e as que muitos milhares de portugueses enfrentaram em meados do século XIX, na Guiana e nas Caraíbas britânicas. E escrevi, também, que as explicações da antropóloga eram adequadas e que o seu artigo tinha tido “o mérito de chamar a atenção para aspectos mal conhecidos da história da exploração do trabalho”. Alonguei-me, depois, a explicitar as condições de transporte e formas de trabalho “quase escravo de portugueses pobres” no Brasil de meados do século XIX, condições e formas que ficaram então conhecidas por “escravatura branca”. Era, aliás, dessa forma que apareciam mencionadas nos periódicos portugueses e brasileiros e que se abordavam e debatiam nos parlamentos ainda que, como assinalei, “técnica e juridicamente não fosse(m) tráfico nem escravidão”.

Por razões à primeira vista paradoxais e incompreensíveis, esse meu artigo incomodou a antropóloga Cristiana Bastos que de imediato escreveu o seguinte na sua página de Facebook: “um antigo historiador convertido a romancista e colunista de opinião faz uso do meu trabalho para levar água ao moinho dele — neste caso uma espécie de lavagem da memória do tráfico escravista. Entra na discussão da ‘escravatura branca’, tantas vezes usada perniciosamente para propósitos de lavandaria de memória. Nem eu entrei na discussão, nem uso o termo, nem vou alimentar o debate”.

A irritada declaração mereceu numerosos aplausos, se bem que tenha causado perplexidade ao também antropólogo José Teixeira que confessou não perceber quem a colega contestava. Cristiana Bastos respondeu-lhe que não desejava desafiar-me, pois eu citava-a “com correcção e os devidos protocolos”, e não lhe imputava um argumento que era meu. Todavia, haveria no meu artigo “um deslize de raciocínio” do qual ela se demarcava totalmente. É que “haver portugueses e asiáticos a trabalhar em condições análogas a escravizados (…) não relativiza de modo algum o que foi a brutalidade do tráfico escravista de africanos para as Américas e Antilhas”. Esse seria um passo que, segundo a antropóloga, eu teria dado. Aliás, Cristiana Bastos rejeitava, também a expressão “escravatura branca” que só usava quando citava os políticos que pretendiam branquear o horror que havia sido o tráfico e a escravidão dos negros.

Aqui chegados os meus leitores poderão começar por perguntar o seguinte: se eu citei Cristiana Bastos com correcção e os devidos protocolos, se não lhe atribuí ideias que são minhas, a que se deverá a sua exaltação e este seu atirar a pedra e esconder a mão? A resposta é óbvia e ela própria a dá: à necessidade de se demarcar. A esquerda woke tem o pavor de poder ser associada a ideias ou pessoas que os seus pares possam julgar politicamente incorrectas. Isso é sobretudo visível na academia, em particular na área das Ciências Sociais, em que, com assinaláveis e louváveis excepções, se encontra a cada esquina não propriamente um amigo, mas sim a falta de nitidez, o compadrio (com muitos compadres a citarem-se e a aplaudirem-se reciprocamente) e um ror de gente sempre a demarcar-se de A ou de B, não vá alguém da respectiva seita académica ficar a pensar que eles poderiam atrever-se a pensar isto ou aquilo. O lema é “não me comprometa”. Assim, o que mais incomodou Cristiana Bastos foi ter sido mencionada num artigo cujo conteúdo não subscreve. Mas… por que misteriosa e narcisística razão a antropóloga achou que teria de o subscrever? Quem o redigiu e assinou fui eu, pessoa que não vai em grupos e que não precisa de coro nem de bengala.

A motivação do escrito de Cristiana Bastos foi, portanto, a necessidade de demarcação. Passemos agora ao conteúdo do que escreveu. A antropóloga não terá percebido que está a tentar ensinar o padre nosso ao vigário. Por incrível que pareça, esta senhora que, tanto quanto sei, nunca publicou um estudo específico sobre tráfico de escravos, considera que eu, que o faço desde os anos 80 do século passado, estou a usar a questão da “escravatura branca” para — pasmem — “minimizar a discussão sobre o tráfico escravista atlântico” (sic). Aparentemente Cristiana Bastos também ignora que já escrevi vários textos historiográficos sobre “escravatura branca”, o último dos quais em 2007, e sempre consegui distingui-la do tráfico e da escravidão de negros. E que disse eu nesses meus escritos sobre o tema? Que a emigração de portugueses para o Brasil e para a Guiana em meados do século XIX era designada por “escravatura branca” por ser feita em condições que se consideravam parecidas com as do tráfico negreiro. Julgo ser evidente que no seu óbvio desconhecimento da documentação e da história desse período, Cristiana Bastos não sabe que a palavra “escravatura” no século XIX não significava escravidão — como ela supõe —, mas sim tráfico de escravos, e remetia, por norma e em primeiro lugar, para a compra, venda e transporte de pessoas e não para a exploração do seu trabalho.

Ora foi sobretudo nesse sentido que a usei no artigo do Observador, explicitando as condições a bordo dos navios e o processo de aquisição dos serviços dessas pessoas. Também falei, é certo, da exploração do seu trabalho tendo, porém, o cuidado de sublinhar que “ao contrário do que sucedia com a escravidão, estes indivíduos (portugueses) não eram, em bom rigor, propriedade de um senhor”. Esse meu artigo, ao contrário do que Cristiana Bastos afirmou, não era para lavar ou branquear o que quer que fosse. Era, como lá se diz, para, no seguimento de um artigo anterior, criticar os woke por serem geralmente indiferentes ou pouco atentos a certas formas de violência laboral ou transportadora, como era a então designada “escravatura branca”. Ainda que isso desagrade muito à antropóloga, que faz ponto de honra em não utilizar a expressão, ela era usada e eu, quando falo do passado, respeito os termos que então se usavam e não sinto necessidade de os censurar, alindar ou purificar. Até porque, ao contrário do que Cristiana Bastos afirma, não eram apenas certos políticos desejosos de branquear as coisas que recorriam à expressão “escravatura branca”. Muita gente o fazia incluindo jornalistas, oficiais de marinha, parlamentares e até insuspeitos abolicionistas como Sá da Bandeira que, como é óbvio, não queria branquear nada que se relacionasse com o tráfico negreiro, muito pelo contrário, e, no entanto, usava, a respeito da emigração de gente portuguesa para o Brasil e a Guiana, a expressão “escravos brancos”.

Será que Cristiana Bastos supõe que Sá da Bandeira estava a fazer, como ela diz, “lavandaria de memória”? Será que desconfia do que eu aqui afirmo? Quererá ver para crer? Eu dou-lhe uma ajuda: consulte, por favor, à laia de exemplo, o Diário da Câmara dos Pares, sessão de 16 de agosto de 1842, página 164. Talvez essa consulta e a leitura do discurso de Sá da Bandeira a ajude a perceber que afinal de contas não sabia aquilo que julgava saber, e que falar em “escravatura branca” não significa que se queira fazer “uma lavagem da memória do tráfico escravista” — intenção que a antropóloga venenosamente me atribuiu — ou desvalorizar o horror que foi o tráfico transatlântico de escravos. Significa, apenas, que se pode e deve falar de ambas as coisas, identificando as suas similitudes e diferenças sem tabus, palas nos olhos ou servidões e genuflexões a agendas políticas e ideológicas porque, como escrevi nesse meu artigo no Observador, “não foram apenas os africanos a serem sujeitos a condições de trabalho duríssimas e degradantes”. Tenho esperança de que Cristiana Bastos possa reconhecê-lo e que a sua eventual tomada de consciência dessas verdades elementares possa contribuir para deswokizar um bocadinho a sua mente e, por tabela, uma academia que disso tão necessitada está.

observador

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