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Plano Nocional de Leitura (XXXIV)

Plano Nocional de Leitura (XXXIV)

Os padeiros sabem fazer pão, o público sabe assobiar, os canalizadores arranjar uma torneira. Os pilotos, porém, já não sabem como pilotar zeppelins; e quem saberá ainda arear metais, compor uma fuga, decepar a cabeça de um condenado, ou fazer versos Continua a haver pessoas da limpeza, músicos, carrascos e poetas: mas certas competências não são já requeridas a quem é essas coisas. No tempo em que se pilotavam zeppelins e decapitava gente à mão os poetas ainda faziam versos; entretinham-se a dispor colecções de sinais que representavam palavras, hesitações e barulhos, de modo que quem os percebesse voltasse a encontrar coisas que já tinha visto ou ouvido antes; e se lembrasse delas.

Há ainda quem decerto saiba escrever versos, mas é como quem é proficiente no machado, destro na solarina, ou componha fugas por desfastio. São costumes raros e antiquados. A preocupação maioritária dos poetas actuais é a de dizer aquilo que acham que se passa; e ao fenómeno aborrece sempre a voz. A ocupação com barulhos distrai da expressão correcta nas missões filosóficas. Não espanta por isso que, embora se tenham inegavelmente ganho outras coisas, se tenha vindo a perder ouvido. Esse ouvido continua não obstante a ser requerido por formas curtas sem grandes ambições, por letras de canções, por trocadilhos equívocos, ou por poemas em verso de poetas mortos a quem ninguém liga.

Um dos poetas portugueses para quem um ouvido cultivado é mais requerido foi João de Deus (1830-1896). Mesmo quando escrevia versos indiferentes nunca perdia de vista os barulhos. João de Deus reuniu os seus poemas em várias antologias com títulos vegetais, culminando no espesso Campo de flores, publicado no ano a seguir à sua morte. Mas as flores dos seus versos fazem muitas vezes corar porque João de Deus nunca conseguia resistir à possibilidade de um bom verso. Os grandes assuntos da poesia (o amor, a morte e a amizade dos cães) parecem apenas um pretexto para se ocupar daquilo que o interessava realmente: ritmos, barulhos e hesitações.

Um caso é o de um seu esplêndido poema narrativo de doze versos. Na primeira parte descreve-se a ralação causada pela indigestão de um militar; e nos seis versos finais exploram-se soluções. O militar fora provido de duas “manas” no verso sétimo, sem razão aparente; uma dá-lhe conselhos médicos nos versos oitavo e nono: “Meta dois dedos na boca / Provoque as ânsias a ver.” O militar rejeita os conselhos com indignação: “Dous dedos na boca . . . louca?! / Se eu os pudesse meter / Metia duas bananas.” Quem ouve “boca” ouve logo “louca;” mas a palavra “manas” atrasa durante cinco versos inteiros a palavra “bananas.” Os versos no poema repetem os dois movimentos da bulimia do militar; e são um triunfo da poesia e da técnica que poucos saberiam hoje como repetir.

observador

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