Livros que nos estragam

Hoje é comum as bibliotecas municipais terem uma prateleira de livros para dar. Na prática, é uma prateleira de livros para dar e receber. Não é suposto que as pessoas apenas levem livros mas que tragam também. Reconheço que tenho praticado muito mais a arte de levar do que a arte de trazer.
A Biblioteca Municipal de Oeiras tem sido ao longo dos anos um segundo lar para a Família Cavaco. Já lá fizemos trabalhos de casa, conhecemos amigos, tivemos encontros inesperados, escrevemos livros, partimos ossos. Tudo. Daí que uma boa parte do que leio surge não só das prateleiras arrumadas e organizadas da sala principal, como também daquela em que os livros podem ficar para nós.
Sendo eu um cristão que crê que nos salvamos pelo que lemos (ou não fosse um protestante teimoso no princípio do “somente a Escritura”), acredito também que o que lemos não pode ser inteiramente previsto. Ou seja, não devemos apenas ler o que devemos, devemos ler também aquilo que não esperávamos ler. Aliás, muitas vezes devemos até ler o que não devíamos ler. Isto significa que o leitor agraciado será também aquele que leu fora da bibliografia previsível, oficial e canónica.
O que é isso de ler fora da bibliografia previsível, oficial e canónica? É, por exemplo, ler um livro que nos apareceu na prateleira para dar da biblioteca municipal. É ler fora da previsão, fora da lista que anotámos, fora do que julgávamos ter a ver connosco. No fundo, para ler a sério é preciso ler fora de nós. Se tudo o que lermos tiver a nossa cara, o mundo é o rio triste no Narciso.
Não vou cair no extremo de dizer que têm sido esses livros inesperados os mais marcantes. Tenho apanhado umas valentes pessegadas. Ainda por cima, como tenho muita dificuldade em abandonar um livro a meio (sistemas de culpa enraizados), faço questão de aguentar até quando não valem a pena (o que também me proporciona uma experiência interessante: ler sem prazer). Os livros inesperados fazem com que a nossa vida não se torne artificialmente literária.
Uma vida artificialmente literária é aquela em que a escrita consolida a personalidade do leitor. É importante a escrita estragar a personalidade do leitor também. Os leitores de personalidade consolidada são um tédio. Dou um exemplo comezinho: uma Feira do Livro é um evento insuportável. Admitamos. Também já andei por lá e até já fiz aquela figura triste de estar a assinar autógrafos numa editora séria. Mas qualquer reunião de leitores consolidados rapidamente resvala para uma versão apenas mais sofisticada de um desfile de gigantones em carne e osso. Quando os cabeçudos são de madeira são mais simpáticos.
Daí terminar com um conselho: lê o livro que não tem nada a ver da prateleira para dar. Uma auto-ajuda foleira (terminei há dias o “O Caminho Menos Percorrido” do M. Scott Peck), um consagrado contemporâneo maçudo (“The Broom of the System” do David Foster Wallace), o esquecido do tempo do secundário (“Eurico, o Presbítero” do Alexandre Herculano), uma emotiva pérola britânica naquelas infalíveis capas da Penguin (“Silas Marner” da George Eliot), um best-seller semi-técnico do New York Times de que nunca ouviste falar (“Rapt” da Winifred Gallagher). Algo que é certo em ler o livro que parece errado é livrarmo-nos de uma existência literariamente consolidada.
observador