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Plano Nocional de Leitura (XXXVI)

Plano Nocional de Leitura (XXXVI)

Embora originalmente usado a propósito do alívio que algumas pessoas sentem ao passear nos cemitérios, mal o Verão se aproxima o conhecido meio-verso “Que paz tranquila!”, de A. A. Soares de Passos (1826-1860), transforma-se também no lema oficioso das classes que recomendam em público leituras a terceiros. Os recomendadores agem sob a influência de dois estimulantes: a satisfação por terem conseguido ler certos livros ainda antes do Verão, e a satisfação de os poder recomendar a quem não os leu. Anunciam que o Verão é a ocasião perfeita para a paz tranquila que a leitura proporciona; mas no fundo acham que o Verão é a altura para mandar outras pessoas fazer os trabalhos de casa, ou seja, ler o que eles já leram.

Recomendar coisas não é nem por sombras objectável. Constitui a actividade fundamental da crítica literária, como das muitas outras tarefas que lidam com conteúdos normativos ligeiros. Não há mandamentos divinos ou leis humanas que determinem que livros em particular deveremos ler; e não existem obrigações sérias de leitura, excepto no ensino, onde são temporárias e se derretem como um gelado, justamente com a chegada do Verão. O conteúdo normativo das recomendações depende por isso do papel que quem emite as recomendações desempenha nas nossas vidas, e da confiança que nos merece. É normalmente ligeiro não porque seja fútil mas porque não há penas para quem ignore essas recomendações. Mas é não obstante normativo, porque quem as ignora pode sentir alguma pena.

Sendo sobretudo no Verão que se anuncia a paz tranquila que os livros podem proporcionar, não é bem entendido só no Verão que se fazem recomendações de leitura. A situação estival causa porém uma perplexidade maior, visto que se recomendam livros na esperança de que aumentem a fervura das ideias na cabeça de quem os lê; ao mesmo tempo que se espera que dessa fervura possa emergir a paz tranquila dos justos. As praias estão em consequência repletas de banhistas perplexos a ler a Guerra e Paz e as Viagens de Marco Polo. Não é de excluir que como espécie gostemos de suspirar ao mesmo tempo por grandes tempestades cognitivas e por um bom passeio pelo cemitério.

Um romano antigo tentou contrariar esta disjunção que parece quase intratável através de uma prescrição clássica. O que lemos, disse ele, deve ao mesmo tempo servir para alguma coisa útil e causar agrado a quem lê. No entanto, tirando os casos do agrado que sentimos por ter feito coisas úteis (como a satisfação que sentimos por ter cumprido um dever muito penoso), quase ninguém encontra na leitura das Viagens de Marco Polo qualquer utilidade, ou prazer. Os sobressaltos causados por essa utilidade a haver perturbam os nossos passeios pelos cemitérios; e a paz tranquila que sentimos nesses cemitérios de Verão faz-nos esquecer os planos para melhorar a nossa educação.

observador

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